TORRE DE TREZENZóNIO

Traição, prisão e desterro de Diego I Pais, bispo de Compostela

Navío normando
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Para cumprir com os principios da secção “A Torre de Trezenzónio” - aportar luz sobre a nossa história- hoje vou servir-me duma riquíssima fonte de informações, ainda que claramente parcial (como, por outro lado, qualquer texto histórico antigo, medieval ou moderno): a História Compostelã (abreviarei em H.C.). Tal vez seja de geral conhecimento a existência desta obra galega, escrita em latim na primeira metade do século XII. O que não é de tão geral conhecimento é o seu contido. 

A obra foi escrita por indicação de Gelmires, o primeiro arcebispo de Compostela, para registar o seu incansável labor para engrandecer a sua cadeira, bispal primeiro e arcebispal despois, e, de passo, a ele próprio. Literalmente não tivo nenhum reparo em acudir a qualquer tipo de actividade que lhe permitise “sublimar” a sua cadeira e o território sobre o que tinha jurisdição. Mas não é dele de quem pretendo escrever hoje. 

Nos primeiros capítulos do texto, os cónegos encargados da escrita –que foram vários ao longo dos anos de produção da H.C.–  dão ao leitor interessado algumas, poucas mais bem, informações sobre os antecessores de Gelmires no cargo. Hoje quero centrar a minha atenção em Diego I Pais.

Bispos aragoneses ns actas falsas do concílio de Jaca (1063)

Infelizmente não existe versão galega do texto –uma de tantas carências deste sistema cultural colonial–, assim que as citas que faga neste artigo serám versões próprias tiradas do texto latino. Imos ao assunto.

A traição do bispo

Como pode ler-se na História Compostelã (Livro I, capítulo 2, apartado 12) A seguir [do assassinado Gudesteu] foi elevado á cadeira de Compostela Diego Pais. Segundo o texto foi Sancho II (†1073) quem o nomeou. 

Este Sancho foi o que apresou Garcia e lhe requisou o reino, mas tenho dúvida a esse respeito. A respeito de nomear ele a Diego, não ao de usurpar-lhe o reino ao seu irmão. Tal vez o bispo fora nomeado por Garcia e Sancho o confirmou no seu cargo após depor o seu parente. O caso é que Garcia não é nomeado nem uma única vez nos mais de 250 capítulos da H.C.. Uma operação de damnatio memoriae em toda a régoa.

Este Sancho foi o que apresou Garcia e lhe requisou o reino, mas tenho dúvida a esse respeito. A respeito de nomear ele a Diego, não ao de usurpar-lhe o reino ao seu irmão

O texto prosegue a dizer que neste tempo mudou o rito toledado polo romano, cousa que foi decidida num concilio em 1080, em que participou o dito Diego. 

Dele diz a H.C. que floreceu por muito tempo generosa e nobremente, mas viveu próximo de mais aos asuntos externos, porque não asumiu, como devia, a intenção interna como é habitual na norma eclesiástica. Polo que foi apresado polo rei Dom Afonso [VI] como exigiam os seus méritos e permaneceu preso durante quinze anos.

Este treito do texto resulta contraditório. Por uma parte era “nobre e generoso” mas misturou-se em preocupações exteriores, que podemos entender por “mundanas” mas não especifica de que tipo. Com esse motivo, o rei encarcerou o bispo quinze anos. Os asuntos tinham que ser de autêntico relevo, ainda que se ocultem, para encarcerar um bispo.

capitelDo asunto, apresentado como traição, volta a falar-se no capítulo 2 do livro II, 115 capítulos despois. E nele se fornece outra informação sobre o tipo de asuntos mundanos... mas resulta muito surpreendente. Ei-lo: 

O rei Afonso expulsou o bispo citado da igreja de Santiago e teve-o preso nos grilhões acusado de traidor. Alguns dos seus inimigos, por inveja, dixeram que se esforçava por entregar ao rei dos ingleses e normandos o reino da Galiza e arrebatar-lho ao rei dos hispanos. Que o divulgado por toda a parte for certo ou não, não é em absoluto o nosso tema (1)

A confabulação de Diego Pais com os normandos (na altura Guilherme o Bastardo ou o Conquistador (1028-1087), duque de Normandia e rei de Inglaterra desde 1066) resulta pouco crível à primeira vista e, precissamente por isso, muito sugestiva. Dá para imaginar, não é? Seria um assunto para investigar a fundo. Ou, de não se achar informação, imaginá-la para uma obra narrativa.

Infelizmente os autores da H.C., amparados no feito de ser conhecido por todos na altura, excussam falar do asunto deixando-nos com o mel nos lábios. Contodo o reflexo dessa oscura “traição” é tão leve que ha que rastejá-lo com muita atenção na documentação medieval ou nas ressenhas dos historiadores... galegos porque os de fora nem falam nisso. Há certas informações, aqui e acolá, que poderiam ajudar a sustentar a possibilidade real dessa acusação. Ou sequer uma suspeita que justificasse a deposição.

Eis duas exíguas referências, contemporáneas da H.C., á presença dos homens do norte na nossa terra. Sem pretender, nem de longe, aclarar o asunto da traição de Diego Pais, passo a nomeá-las. 

Numa doação a S. Martinho de Júvia, Pero Froilas diz: ... e depois disto vinheram gentes do norte á mesma provincia e foi destruída a verdade e exaltada a mentira e tiveram-a em usufruto homens que não eram da nossa progénie (2).

A confabulação de Diego Pais com os normandos (na altura Guilherme o Bastardo ou o Conquistador (1028-1087), duque de Normandia e rei de Inglaterra desde 1066) resulta pouco crível à primeira vista

O texto parez indicar que a propriedade da que se fala fora ocupada por laudomanes, o nome dos homes do norte ou normandos (incluídos os da Normandia) na altura, mas o detalhe não fica claro. Tal vez os vikingues, como se acostuma chamá-los hoje, foram apenas a força de choque, a soldo de homens do país, ou foram eles mesmos os que ocuparam o território. É difícil sabê-lo com o literal do texto.

Noutro treito desse documento diz que Gonçalo, bispo de Mondonhedo entre 1071 e 1112, a recuperou (militarmente?) e lha devolveu à sua família, os Trava, da que ambos os dous (Pero Froilas e Gonçalo) eram membros importantes. Mercê á sua acção puido se fazer a doação ao mosteiro de Júvia objecto do documento.

Deste Gonçalo existem diversas lendas (de vitórias sobre normandos) e outros relatos, mais ou menos verídicos, e conservamos, como objectos de valor incalculável, o seu anel e a parte metálica do seu báculo... mas este é outro tema. Voltemos a Diego.

Alguns têm esgrimido para tal traição um hipotético intento de Pais para liberar o rei Garcia, ainda vivo (o coitado morreu em 1090). Mas nada permite tirar essa conclussão por mais atractiva e justiceira que ressulte. Mesmo nalgumas obras divulgativas dá-se por certo que participa da rebelião de Ovequis contra Afonso VI em Lugo, sem que se aportem dados conclusivos.

O texto da H.C., citado acima, explicita que alguns dos seus inimigos, por inveja dixeram o que serve como acusação para a traição e que o asunto fora divulgado por toda a parte. Mais parez uma trama urdida para acabar com Diego do que uma acusação real. A inveja e a propalação de rumores não são precissamente acusações provadas. O caso é que serviu para justificar a prisão de Diego durante um longo período e a sua deposição da mitra de Compostela.

A prisão

A pesar de a H.C. afirmar que estivo preso por 15 anos, outros dados fornecidos por esta nossa fonte deixam poucas possibilidades de que o tempo fora tão extenso. Fagamos uns cálculos aproximados.

Alguns têm esgrimido para tal traição um hipotético intento de Pais para liberar o rei Garcia, ainda vivo (o coitado morreu em 1090)

Vejamos. Diego Pais foi elevado á cátedra, tal vez por Garcia ou tal vez por Sancho, que morreu em 1073. Floreceu multo tempore antes de ser apresado pola sua implicação em feitos externos (a traição do livro II da H.C.). Passou quinze anos em prisão e, em 1088, foi apresentado no concílio de Fusellos (em espanhol Husillos) para removê-lo do seu cargo. A H.C. narra assim o episódio:
 
Assim durante o Concílio realizado em Santa Maria de “Fusellos” por Ricardo, Cardeal e Legado da Santa Igreja Romana, o mesmo rei Afonso acudiu e mandou que o antedito bispo [Diego Pais], a quem figera manter longo tempo preso, fosse ao Concílio, quase libre mas, com todo, custodiado, para desposuí-lo da sua dignidade episcopal. Então, o bispo citado, por medo ao Rei e com a esperança da liberação, padeceu o juiço do Cardeal Romano e proclamando-se ante todo o Concílio indigno do Episcopado, entregou o anel e o báculo pastoral ao Cardeal. O Cardeal pola sua parte concedeu o permisso para entronizar outro, Pedro de nome, Abade de Cardenha, na Cadeira Pontifical da Igreja de Santiago. Depois disto o sobredito bispo, agraviado neste juíço, foi levado caminho da prisão do Rei (3).
    
Imos fazer uns cálculos básicos. Entre 1071, uma das possíveis datas do inicio do episcopado, e 1088, data do concílio, transcorrem 17 anos. Como é possivel que estivera em prisão 15 anos se “floreceu muito tempo” na sua cátedra? Tal vez esteve ainda anos em prisão após o concílio, como um pode intuir da H.C. mas não tantos anos. Para isso acudimos à documentação aragonesa onde se cita o bispo galego, que permite localizá-lo alá em 1094. Apenas cinco anos após o concílio.

A informação da H.C. deve estar errada no número de anos ou confunde a duração do seu episcopado com o tempo em prisão. Este último erro é mais provável se o autor que nos fornece a informação é um extrangeiro, como o cônego franco Giraldo, um dos redactores das partes finais da obra, que conheceu os feitos de segunda mão.
 
A decisão do Cardeal Ricardo foi duramente criticada em Roma e rectificada aos dous anos de ser entronizado Pedro (por tanto em 1090), segundo a versão da H.C., e de novo ficou vaga a sé compostelã.

Contodo Diego I não obteria desta retificação nenhuma vantagem. Tampouco conseguiria recuperar a sua mitra durante a sucessão de administradores que seguem á deposição de Pedro (os laicos Pero Vimáraz e Árias Diaz, e o cônego Diego Gelmires), e o brevíssimo episcopado de Dalmácio (nomeado por Raimundo de Borgonha) morto em 1095. Á sua morte Diego I viaja a Roma para reclamar, ao mesmo papa Pascoal II, a sua reposição... sem o menor sucesso (H.C., L.I, cap. 6).

Muito ao contrário, este Santo Padre, que estivera na Galiza como legado e conhecera Afonso VI e o caso de primeira mão, decide tergiversar as decisões do seu antecessor, Urbano II, e decreta que...

...o nosso irmão Diego foi justa e canonicamente removido do bispado. Ainda que o nosso senhor Urbano lhe permitisse o ofício episcopal sempre que fosse convocado por alguma igreja vaga...(4)

Onze anos passados desde o concílio de Husillos tinham mudado algo nas relações da Cúria Romana com o monarca ou era o momento de mudá-lo.

O desterro

Não sabemos desde quando o bispo Diego morou fora do reino de Afonso. O pouco que sabemos é que por volta de 1094 (5) chega a Aragão, onde o monarca, Sancho Ramires, o recebe amistosamente.

Junto com o bispo chegam também alguns acompanhantes, que serám referidos na H.C. diversas vezes como motivo de temor pola seguridade e integridade dos legados do sucessor e do mesmo bispo Gelmires. Entre eles ia o mestre Estevão que difunde polas Cinco Villas alguns dos motivos arquitectónicos da já iniciada, por ordem de Diego I (1072), catedral románica de Compostela.

O prestígio persoal e como bispo de Compostela permitiu a Diego participar da corte real de Aragão e obter benefícios para a sé compostelã. Achamo-lo como signatário do documento de reparto de Huesca recém conquistada em 1096. Dous anos mais tarde Pedro I de Aragão concedia á catedral de Santiago de Compostela, na persoa do seu bispo exiliado, umas casas dum mussulmano, Ibn Atalib, em Huesca. Também é nomeado noutros documentos de donação em 1099 (Barbastro) e como mediador em litigios em 1100, em Sobrarbe, e em 1104, em Leyre.

O prestígio persoal e como bispo de Compostela permitiu a Diego participar da corte real de Aragão e obter benefícios para a sé compostelã

Não há mais registro de actividade do nosso portagonista, motivo polo que alguns deduzem ter morto nesse ano ou no seguinte. De ter sido consagrado bispo com a idade canónica mínima de 35 anos em 1071, o prelado teria alcançado uma idade aproximada de 68 anos ou tal vez mais.

Até aqui a descrição dos factos dum personagem praticamente desconhecido para a maioria dos galegos e, contodo, promotor da nossa mais eminente catedral. A interpretação que poidamos fazer sobre a sua hipotética traição e os motivos do monarca para o destituir pode variar enormemente segundo os critérios de cada quem. Para mim o motivo fundamental foi librar-se dum sério inconveniente para a Reforma Gregoriana na Galiza do tempo e deixar franco –nunca melhor dito– o passo a um controle total de Roma sobre os asuntos da Igreja e da Monarquia galaica. Mas esse é outro assunto.

Notas:

(1) H.C. L. II, cap. 2: Quem episcopum praedictus Rex Alfonsus expulit ab Ecclesia B.Jacobi et diu tenuit captum in compedibus, imposito ei nomine proditoris. Quidem enim ejus inimici invidiae zelo dixerunt, quod Gallaeciae Regnum prodere Regi Anglorum et Normannorum et auferre Regi Hispanorum satageret. Quod circumquaque vulgatum utrum verum fuerit, an non, non est modo nostrae materiae.

(2)... et post hoc uenerunt gentes laudomanes in ipsius prouinciis et destructa est ueritas et exaltata est mendacitas et tenuerunt illa homines que non fuerunt ex proienie nostra ad usu fructuario.

(3) H.C. L. I, cap. 3: ...Celebrante itaque Ricardo Santae Romanae Ecclesiae Cardinali atque Legato apud Sanctam Mariam Fusellos Concilium, idem Rex Adefonsus fuit et praedictum Episcopum quem diutius vinculis mancipari fecerat, quasi solutum, sed tamen sub custodia, ad Concilium venire jussit: videlicet ut eum a Pontificali dignitatie dejiceret. Tunc praedictus Episcopus metu Regis et spe liberationis praejudicium Romani Cardenalis passus est et coram omni Cocilio se indignum Episcopatu proclamans annulum et virgam pastoralem Cardinali redidit. Cardinalis autem alium, videlicet Petrum nomine, Cardinensis abbatem, in Pontificalem Ecclesiae B. Jacobi Cathedram intronizandi licentiam concessit. Post haec idem Episcopus quamquam praejudicio gravatus, captioni tamen Regis iterum mancipatus est.

(4) H.C. L. I, cap 7: ... patenter constitit confratrem nostrum Didacum,..., juste et canonice ab Episcopatu semotum, quamvis ei Dominus noster Urbanus officium Episcopale permiserit si quando a vacanti evocaretur Eclesia.

(5) segundo A. Canellas López e A. San Vicente no volume 4: Aragón de La España románica.

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