A TORRE DE TREZENZÔNIO

A torre desde a que o fillo de Breogán albiscou Irlanda

Segunda entrega da Torre de Trezenzônio, a sección que explora os fitos chaves do pobo galego que fican "ocultos", "esquecidos" ou foron "terxiversados". Este número: a pegada galega na historia irlandesa.

Torre de Hércules (Foto: media.ireland.com)
photo_camera (Foto: media.ireland.com)


«Eu, Trezenzônio, entrei só nas solidões da Galécia, abandonada pola furia dos ismaelitas e não achando vestígio de vida humana cheguei, na minha vagabundagem, até o faro Brecantio. Subi até o cimo dele, onde havia um grande espelho. Nele reflectia-se a luz do sol e mercê a ele conseguim engergar, entre as remotíssimas flutuações das águas, uma grande ilha.»

Assim se apresenta, em tradução livre, Trezenzônio ao leitor na narração latina medieval “de insula Solistitionis” (a ilha do solstício). O relato, datado no século XI, foi conservado em dous manuscritos do séc. XIII da biblioteca de Alcobaça, em Portugal. Soubo-se dele em 1918 num Boletim da Adacemia das Ciências de Lisboa, editado por Pedro d’Azevedo. Recolhido de novo polo professor Manuel C. Díaz y Díaz no seu volume Visiones del más allá en Galicia durante la alta Edad Media (Compostela 1985), o livro, desde aquela, não foi reeditado e ficou relegado a exemplar raro, mesmo em bibliotecas. Também foi dado á luz por Aires Nascimento em duas ocasiões (1989 e 1998), dentro de estudos mais amplos e reservado, pola sua própria índole, a um público erudito.

Uma torre de enxergar ilhas 

Quem conhecer o relato de Ith, filho de Breogão, contado no Lebhar Gabhala Eireann, reconhecerá o tom geral do relato. A ideia duma torre donde se pode enxergar, ao olhar para o mar, uma ilha esplendorosa e tão atractiva como para não deixar de pensar cômo chegar a ela acontece, também, na “historia dos filhos de Mile” incluída nesse livro.

A coincidência (a nossa história, lenda, música e tradição está cheia de coincidências) pode ressultar, de seu, abraiante. Ainda mais abraiante a coincidência do contexto de despovoamento do território galaico que transmite, porque essa circunstância está também presente no relato irlandês. Claro que não se atribui á acção ismaelorum. Esta atribuição é, parez claro, uma adaptação ás circunstâncias do tempo (séc. XI) da escrita do relato de Trezenzônio e, tal vez, á intenção divergente dos relatos. Numa versão em espanhol do Lebhar Gabhala diz assim:

Entonces se dirigieron (Golamh, sobrinho de Ith e neto de Breogão, e os seus) a Brigantia y encontraron la ciudad vacía ante ellos... pues ... el odio de sus enemigos … persiguió a los Goidhil  y los dispersó obligándoles a buscar refugio en los países vecinos…

Os detratores da “veracidade mítica” do relato iralndês aduzem precisamente a sua origem e que a identificação dos elementos com a nossa realidade é pouco racional. O argumento resulta de todo ponto invalidado

E várias páginas adiante passa a falar de Ith como experto y muy preparado en conocimientos y estudios. … Una vez, cuando Ith se encontraba en lo alto de la Torre de Breogán, contemplando el mundo a su alrededor, le pareció ver una sombra parecida a la forma de una elevada isla lejos en la distancia…

Ith voltou morto da ilha alviscada. Na verdade essa viagem, ainda não feita em solitário, parez uma versão da viagem ao Além. De facto o Lebhar Gabhala apresenta a ilha de Irlanda como a residência dos Tuatha Dé Danann e protegida por feitiços que a faziam invisível e, por tanto, inacesível, como o é para os vivos o mundo dos mortos. Em certo modo a ilha enxergada no horizonte desde a Torre de Breogão é uma terra divina que não se converte em terra habitada por humanos até que os Milésios vencem a gínea de deuses que são o Povo da deusa Dana –Tuatha Dé Danann-.

Os detratores da “veracidade mítica” do relato iralndês aduzem precisamente a sua origem e que a identificação dos elementos com a nossa realidade é pouco racional. O argumento resulta de todo ponto invalidado pois existe uma versão medieval galega, em latim, do mesmo relato. E, pola datação, mesmo anterior á primeira posta por escrito do livro irlandês, ainda que a matéria deste seja muito mais antiga.

Os elementos comuns são a trama do relato, o motivo principal da fição. Para que Trezenzônio decidira partir à ilha do verão (solistitionis) não precissava de Faro Brecantio, nem de espelho (mítico), nem de terra despovoada. Quer dizer o material básico de ambos relatos deriva duma fonte comum ou um é a fonte para o outro. Desde o meu ponto de vista, o relato do Lebhar Gabhala é anterior e rememora um feito pré- ou proto-histórico que os estudos de ADN têm confirmado, quando menos no seu resultado final: a colonização de Irlanda por gentes procedentes do noroeste ibérico. 

O azar (no sentido tradicional de “má sorte”) e o desinteresse, quando não a intenção maliciosa, têm acabado com boa parte do nosso passado. 

Também deixa translucir este breve relato que os homens cultos do medievo galego conheciam tradições antigas, partilhadas com outras terras do nosso mar oceano. Falo da coincidência no argumento e nos detalhes, de comercio e navegação ao longo de milénios e de tantas outras cousas esquecidas, encobertas. Mas falo tambem na intenção “religiosa” de procurarem os nossos homens santos, como os das Ilhas Britânicas, terras a ocidente. De facto o relato de Trezenzônio é uma elaboração galaica dum gênero “clássico” literário irlandês: os immrama. Viagens marinhos de personagens santas (como São Brandão ou de S. Amaro) que procuram a ilha do paraíso, dos benaventurados...

Olharmo-nos desde o alto 

As próprias circunstáncias da transmissão do relato convertem-o num exemplo do que, nesta coluna, pretendemos: deitar luz sobre os imensos escuros da nossa história. O azar (no sentido tradicional de “má sorte”) e o desinteresse, quando não a intenção maliciosa, têm acabado com boa parte do nosso passado. Nós, os galegos, povo antigo e de particular e acentuado carácter carecemos dum discurso histórico próprio ou, no melhor do casos, focalizado desde as terras altas da meseta castelhana. 

Nós, como Trezenzônio, queremos subir-nos a um faro, na beira-mar e enxergar o mundo desde o nosso espelho, o dos galegos, orientado ao ocidente, e  olhar os feitos da nossa terra, tildados com frequência de lendários, com olhos desprejuiçados, com perspectiva atlântica. Deitar a vista para o oceano e para os povos que por esse mar nosso chegaram e partiram, aos povos que os nossos antepassados visitaram e trataram... a essas ilhas, mágicas ou não, que conformam boa parte da nossa memória colectiva teimudamente negada mesmo por nós mesmos.

E essa longa história milenária está cheia de factos, de persoas, de saberes que rara vez merecem uma alinha nos livros de história que lem os nossos filhos nas escolas.

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