Os nomes do terror

Susana Aríns: “A família é um dos piares dos regimes fascistas”

Susana Sánchez Arins (Vila García de Arousa, 1974) é autora dum dos mas celebrados romances sobre os verdugos, Seique.Achega-nos em Os nomes do terror de Nós Diario unha investigação sobre o protagonista da obra, Manuel García Sampayo e a sua participação no processo repressivo.

SUSANA Aríns,foto
photo_camera Susana Aríns

Que queres dizer quando afirmas que “Manuel García Sampayo é exemplo de como a família, em quanto instituição, é a primeira célula de controlo e repressão no sistema franquista”?

Pois exatamente isso. A família um dos piares dos regimes fascistas, (família, deus, pátria). Reproduz no doméstico a estrutura do estado, com um patriarca que acusa, julga, premia e condena. Em muitas ocasiões, como no da minha família, não é preciso que intervenha a autoridade civil ou militar, porque já o senhor da casa se encarrega de tomar as medidas que sejam precisas. É especial o controlo sobre mulheres e sobre qualquer desvio da norma que se dê. Numa situação como a da pós-guerra, de pobreza sobrevida, ser expulsa da família era um risco que muitas não podiam correr, por simples supervivência.

Quando falas de que “O tio Manuel era falangista, dos maus, e nisso a família diferenciava-o do tio Ramón (García Sampayo), que era falangista dos bons”. Como se explica essa diferenciação e em que se fundamenta. Até que ponto o “falangista bom” não legitima um fascismo que em si não será malo nem bom, mas que dependeria do uso que se fizera del?

A justificação familiar é clara: ao tio Manuel se lhe apõem mortes (assassinatos) e torturas. Ao tio Ramóm não. Mas é justificação familiar, não minha. Na minha obra questiono essa diferenciação. Há um trecho, que pessoalmente adoro, em que levo a comparação com o regime escravagista, onde havia grandes proprietários que não maltratavam a sua servidume. Dão a ver que não é mau o sistema mas os elementos que abusam dele e do seu poder. E a realidade não é essa. O tio Ramom ajudou alguma gente. Mas a outra não. E essa arbitrariedade, o não saber se vás ser beneficiário ou prejudicado, faz parte do sistema de terror imposto trás o golpe. As pessoas ignoravam se iam ser atacadas por um ou salvadas por outro. Um precisava do outro para manter a sua autoridade. 

Como impactou a exumação da fossa comum de Curro (Barro) e como influiu na tua pesquisa no esclarecimentos da autoria dessas mortes?

Para mim foi o germe da pesquisa, tal o impacto. Uma vez conhecidas as histórias de Ramón Barreiro e Castor Cordal não podia deixar de pensar no lugar privilegiado que as terras dos meus bisavôs, Portaris, ocupavam no seu via crucis de morte. Fazia-se-me inconcebível que o tio Manuel, que governava já daquela a casa, não tivesse nada que ver, quando menos, no traslado de Cambados ao Curro, sendo como era falangista reconhecido. Decidi que essas eram as mortes que a família lhe apunha.

E em paralelo a isso chegou a mim a responsabilidade cívica de partilhar o que encontrasse nas pesquisas para oferecer aos familiares das vítimas, no mínimo, a verdade. Não ficava tranqüila conhecendo um nome e mantendo-o em silêncio.

O relato literário permitiu - che contar cousas que não permite o ensaio histórico?. Como vês as diferentes linguajes

Acho que a estrutura narrativa permite dar entrada a emoções e reflexões que ficariam fora de um ensaio histórico. Acho que a voz narrativa, neste caso a da geração das netas, coloca uma distância emocional necessária para construir um discurso respeitoso com as vítimas ao tempo que introduz a reflexão sobre a transmissão da memória da guerra e como isso marcou as famílias. Eu achava de menos, noutras narrativas sobre o golpe e a repressão, dar espaço ao silêncios, aos tabus, às reviravoltas na construção da memória para manter a respeitabilidade das famílias e ocultar feitos indignos. Contar desde dentro complementa a visão ensaística, que é um contar desde fora, também essencial.

A análise individualizada explica processos repetidos noutros casos que permitem aclarar unha pauta geral. Este é o caso da expulsão da falange que é muito comum a outros múltiples “paseadores”. Como se concretizou neste caso?

Não tenho muitos dados: após o assassinato de Daniel Varela Muñiz o tio Manuel é expulso da Falange. Mas nos documentos que eu pude consultar no Arquivo Histórico Provincial de Ponte Vedra não se conservam papeis com data tão achegada ao golpe, e aparece, por contra, depurado positivamente em 1945. Para mim, o fato de ser alcaide de Riba-d’Úmia no ano 1940 é bom indicador de que essas expulsões da Falange eram aparentes e que os passeadores eram elementos essenciais no sistema de terror.

Outro caso de análise que se pode tirar conclusão a nível geral é ao que te referes de “a igreja aponta, os cívicos disparam”?. E no Salnés não temos também o caso de que a igreja também dispara?

No caso do assassinato de Manuel Varela Muñiz, a família deste denunciou a implicação direta do padre de Besomanho. Seique foram pedir as admonições para o casamento e já lhes indicou não serem necessárias pois não havia chegar vivo a esse dia.

Houve dois padres em Vila Garcia que presumiam de carregar com a espada e a cruz: o padre Chantada e o padre José Gago, que era o pároco da minha família. Eu tenho uma leve lembrança deste último pois temos acompanhado ao meu pai a visitá-lo quando crianças. O meu pai fora acólito dele quando meninho e tinha-lhe grande respeito, desconhecedor como era da sua faciana fascista. E este José Gago também se instalou na história familiar como amigo e cúmplice do tio Manuel.

A mim impactou-me saber que este padre ordenou enterrar um passeado sob a lousa de entrada ao adro da igreja de Ceia, para que toda a freguesia o pisasse quando fosse a missa. Impressionou-me que uma crueldade tal se desse num espaço para mim familiar, doméstico, pois a esse adro ia eu nas visitas aos avôs. Acho que era essa uma das forças da repressão fascista: apresentar a violência nos espaços de vida quotidiana.

O estudo concreto permite avaliar até que ponto a participação na repressão  foi rendíbel. Como o vês neste caso?

No caso da minha família deu-se um algo de justiça poética. O tio Manuel ficou, de maneiras ainda pouco claras, mas acho que utilizando os seus poderes e contactos, com boa parte das terras dos meus bisavôs. Boas terras. Entre outras, roubou à minha avó a sua parte. E claro, a minha avó achantou, que a ver quem se arrepunha a alguém como esse senhor. Mas passado o tempo foi enganado, junto com um dos seus companheiros de quadrilha cívica, por um cargo fascista de Ponte Vedra (de quem ainda não pude confirmar a identidade) que os convenceu para avalizar um negócio que não saiu. Desta maneira perdeu toda a propriedade familiar, para risos contidos de parte da parentela.

Acho que não deixava de ser um monifate do regime, um tonto útil de quem se aproveitaram quando quiseram e desbotaram quando deixou de ser necessário.

Analisa uma dimensão difícil de quantificar e visibilizar que é a repressão das mulheres coa sua dimensão específica. Como vês estas dificuldades por tirar luz destes casos?

Há um problema básico: o silêncio já irremediável sobre esse tipo de repressão. As agressões sexuais não foram habitualmente verbalizadas. Estende-se sobre elas o tabu e mesmo um sentido respeito pela dignidade das vítimas. Não contar por não marcá-las mais. Conto com uma gravação de uma senhora de Meis, Mercedes Abal, que quando narra as agressões a uma vizinha, Manuela Abal “A Facheira”, só acerta a pronunciar a frase “ai, o que lhe fizeram!” repetidamente. A nós só nos fica essa pista. E agora é tarde. Quem podia contar morreu. Só podemos intuir, deduzir, supor.  Saber o que aconteceu em verdade já não é possível. Mas conhecendo o uso das agressões sexuais como arma de guerra noutros conflitos bélicos, não é difícil imaginar que terão feito com esta e outras mulheres.

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