A TORRE DE TREZENZONIO

Cerveja, bebida de bárbaros?

De seguido, publicamos un artigo da serie histórica "A Torre de Trezenzonio". Desta vez, Henrique Egea lévanos aos alimentos que constituían os alicerces da civilización helena.

cervexa

Tres eram os alimentos que constituíam os alicerces da civilização helena: O cereal (nomedamente trigo), o azeite e o vinho.

A força natural das plantas (cereal e videira), que morrem e renacem num contínuo ciclo, foi divinizada e celebrada en diversos rituais mistéricos como o culto a Deméter (os mistérios eleusinos) ou culto a Dionissos (as bacanais), entre outros.

O de comer pão, que na Odiseia era signo de civilização, ficou tão extendido que cedo deixou de diferenciar os povos. Mas o consumo de vinho foi outra cousa. Beber vinho era uma amostra de civilização e por vezes, desde a Grécia clássica, de sofisticação.

Aromatizavam os caldos com diversas especiarias e mel ademais de rebaixá-lo, como diziam os nossos velhos, batizando-o com água

Mas nem o consumo de vinho garantia uma posição entre os povos civilizados. Gregos e latinos consumiam este álcol de geito bem diferente do que nós estamos afeitos. Aromatizavam os caldos com diversas especiarias e mel ademais de rebaixá-lo, como diziam os nossos velhos, batizando-o com água.

Sin títuloDe facto, entre os gregos, o epítome da barbárie era o hábito dos gálatas de consumirem o vinho puro, sem rebaixar nem “preparar”... e, como é lógico para quem nem toma o trabalho de o preparar, imoderadamente. Os mesmos macedónios, difussores da cultura helena polo oriente, eram considerados meio bárbaros polo costume de beberem os caldos sem rebaixar. O consumo de vinho puro alcançou tal reputação de prejudicial que foi culpado da morte prematura de Alexandre o Grande.

Esta percepção das cousas foi herdada polos romanos, que embora fossem muito menos contidos que os helenos, assumirom muitos dos seus pontos de vista. Contodo as bacanais autênticas eram, a olhos dos puritanos romanos, cousa deplorável. Suponho que porque as mulheres participavam activamente. Assim que decidirom proivi-las arredor do 200 ane polo senatus consultum de bacanalibus, sem muito efeito. A pesar do desgusto por este culto selvagem, os romanos exportarom as videiras a todo o seu império e beneficiarom do seu poder civilizador até aos longinquos galaicos.

Assim que desde que a cultura greco-latina se tem elevado ao Parnaso da Cultura, com maiúsculas, sempre se tem identificado o vinho com a civilização. E essa civilização procede de oriente (ex oriente lux) identificando a luz do sol que amanhece com a origem necessária de tudo.

Os mistérios eleusinos e outros pervivem, adequadamente manipulados, na eucaristia. Mas nada há já da imoderada religiosidade das bacanais

Alicerçada nas feces do Império, a Igreja Católica Apostólica e Romana, herdeira do cínico puritanismo romano, adoptouno sacramento da comunhão dous destes alimentos, o pão e o vinho, como símbolos que foram e som da resurrecção. Os mistérios eleusinos e outros pervivem, adequadamente manipulados, na eucaristia. Mas nada há já da imoderada religiosidade das bacanais.

Ainda na Idade Média, como hoje, o consumo de vinho considera-se tão civilizador que até serve para distinguir a gente corrente da sofisticada. Assim o diz Afonso IX, o sábio, na sua cantiga burlesca contra covardes: vi coteifes orpelados... conhecedores de vinhos...

Do terceiro elemento, o azeite, podemos dizer que iluminou, literalmente, os templos durante séculos e ungiu reis consagrando-os na sua função divina de representantes de deus no mundo.

E que há da cerveja?

Para os antigos a cerveja era uma bebida de bárbaros, no peor sentido da palavra bárbaro. E isso a pesar de ser a bebida nacional de Egipto. Era um dos costumes que degradavam os egipcios aos olhos dos helenos.

Entre os helenos o termo bárbaro apenas designava os que não eram quem de falar grego. Com esse sentido era aplicado a egípcios, persas e outros povos aos que viam como civilizadose com um grao de sofisticação repugnante aos seus olhos, mas também a povos menos sofisticados como trácios, ilírios, gálatas e un longo etc. Mas o concepto irá variando até se converter num despectivo calificativo de quem não tem modais e actua de forma brutal ou sórdida.

Na Geografia, Strabo falanos nossos antepassados, os Kallaikoi e outros povos das montanhas, e podemos observar o retrato que deles faz. A intenção é caracterizá-los como bárbaros a través dos seus costumes. Eis a descrição em tradução livre:

os montanheses dispõem de castanhas (outros traducem landras),secando-as e golpeando-as, dous terços do ano e panificam-as para armazená-las para o futuro. Dispõem também de cerveja (literalmente fermento de cevada),masescasea-lhes o vinho.O producido rapidamente consômem-o brindando com os seus parentes. Em lugar de azeite têm banha [1].

Como pode observar-se os montanheses estám caracterizados polos tres produtos básicos da civilização (greco-latina) da que Strabo é representante.

Ele conta-nos que fazem pão de castanhas (aduzim os meus argumentos para traducir assim no artigo Landras ou castanhas? na “Terra e Tempo” digital) ou de landras. Este comentário pretende caracterizá-los, e assim o asumem muitos autores, como primitivos e desconhecedores do cereal.

Mas acto seguido, noutro intento por barbarizá-los, afirma que bebem cerveja em lugar de vinho porque deste producem ou conseguem pouco. Eis uma contradição. Se bebem cerveja é porque producem cereal em quantidade suficiente para produci-la. Poderiam panificá-lo masprefirem panificar as castanhas (ou landras)... por algo será. Não é por desconhecerem a agricultura cerealística, que é óbvio que praticavam.

Recentemente se têm achado na Galiza lagares com restos de bagaço datáveis em época romana

Respeito do vinho, a tradução habitual do termo grego (γινόμενον),referido ao vinho,adoita traducir-se como “conseguir” mas eu prefiro o significado, também resenhado nos dicionários, par o termo de “producir(-se)”. O primeiro presupõe que não cultivavam videiras (outro risco de primitivismo) mas, ainda que a produção de vinho nas montanhas seja difícil, não significa que não poidam ter produção em zonas baixas próximas, máxime se temos em conta que recentemente se têm achado na Galiza lagares com restos de bagaço datáveis em época romana, sem falar da produção no território lusitano anterior em muito à incorporação ao Império.

No final do fragmento, o terceiro elemento civilizador. Carecem de azeite que substitúem por banha. Já os temos onde queria Strabo. Uns bárbaros sem cereal, sem vinho e sem azeite. A santa trindade.

Elaborar cerveja é, assim, tão bárbaro?

De fazermos um repaso do proceso de elaboração do vinho podemos apreciar as complexidades que a criança dum vinho, ruím ou bom, tem. Os produtores hão de plantar as videiras em terreo adequado e aguardar pacientemente a producirem os cachos. No nosso estilo produtivo háque podar (1) no tempo, atar (2), adubar, sulfatar e outros muitos processos antes de vendimar (3) os ácios e premê-los para lhes tirar o suco. Uma vez no lagar há que os pissar (4)e trasegar. Logo vem a fermentação (5) e voi-là,após meses de trabalho e repouso nas barricas, o vinho novo está disponível. Claro que no tempo antigo algúns destes trabalhos não se faziam (sulfatar por ex.). Mesmo noutras latitudes não é costume atar a vinha por inecessário. O clima húmido apodrece a uva e cumpre dar-lhe tanto ar como se puder espalhando as polas da videira.

Que dizer do processo da cerveja? Sendo uma bebida de bárbaros bébados há de ser muito singelo, não? Vejamos.

Despois de meses de laboriosos processos temos uma bebida alcôlica que se perde em pouco tempo se não a pasteurizas

Primeiro há que cultivar o cereal (1) do que pretendemos tirar a cerveja. Normalmente cevada. Foi longo tempo cereal de forragem, como o seu nome indica. Mas também podemos servir-nos doutros. Trigo, por exemplo, ou centeio. Uma vez crecido há que ceifá-lo (2), trilhá-lo (3) para separar o grão da palha, secá-lo. Até aqui tudo é comum à produção do pão. Para a cerveja temos que maltear o cereal. Isto é, fazê-lo germolar (4) e tostá-lo (5) quando começa a abrir sem deixar que gome. O tostado é uma operação esencial para conseguir a cor da cerveja. Muito tostado a cerveja sai preta ou tostada, pouco tostada, ruiva. Depois há que cocer o malte (6) e enfriá-lo (nos sistemas modernos) para deixá-lo fermentar (7). E voi-là aussi, eis a cerveja. Despois de meses de laboriosos processos temos uma bebida alcôlica que se perde em pouco tempo se não a pasteurizas. Mas tem uma vantagem técnica: podemos produci-la en qualquer momento do ano se conservamos adequadamento o cereal malteado.

Como pode apreçar-se polos números entre parénteses a produção de um e outra bebida consta dum número de fases diferente. Cinco no processo do vinho, sete no da cerveja.

E vós que me leis, achades assim que é tão bárbara?!

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