Ceifar as searas dos outros

É assim como Anselmo de Andrade, economista, grande proprietário agrícola, jornalista e político português, ministro de fazenda no último governo da Monarquia, fala dos galegos.

A Coruña 1900
photo_camera Imaxes da Coruña en 1900 [Clube do Automóbil de Galiza]

Anselmo de Andrade nasceu em Lisboa em 1844 e morreu em 1928. Em 1885 publicou um livro, com segunda edição em 1903 e terceira, da que cito, em 1923, titulado Viagem na Espanha. Entre a primeira e a terceira edição, corrigida, revista e ampliada, permanecem os mesmos tópicos que, no caso da Galiza, podemos resumir numa palavra: Galiza é um sitio “pitoresco” . 

O livro de Andrade parte do principio de que a Espanha, incluindo a Galiza,  é o único lugar da Europa onde permanecem  os costumes e os tipos mais originais

O livro de Andrade parte do principio de que a Espanha, incluindo a Galiza,  é o único lugar da Europa onde permanecem  os costumes e os tipos mais originais, as tradições populares autênticas porque “a rasoura da civilização não nivelou por ora os costumes”. Participa, neste sentido, da tradição dos livros de viagens da época que consideravam a península Ibérica em geral e a Espanha em particular, um lugar incivilizado, como nos lembra Eça de Queiróz em A Cidade e as Serras, quando Jacinto volta de Paris:
“Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o termo da vida fácil, os abrolhos da Incivilização, Jacinto suspirou com desalento: 
-Agora adeus, começa a Espanha!... “
E se esta é a Espanha, a Galiza é … “na Espanha é uma engeitada. Fóra da Espanha é quási o pais hotentote da Europa”. Com estes fios tece Andrade a sua teia.

Viagem na EspanhaDa Galiza
Estamos perante um livro que tem mais de viagem literária do que física e real mas que nos fornece duma serie de dados que chamam a atenção do autor, especialmente o de não dispor a Galiza duma burguesia com consciência nacional e apresentar uma sociedade composta exclusivamente “por classes trabalhadoras”. 
Com esta perspetiva desenvolve  Anselmo de Andrade o seu trabalho e os resultados são uma visão da Galiza e os galegos que faz lembrança, por vezes,  da dos poetas espanhóis do século XVII embora o começo do capítulo IX, o dedicado à Galiza, comece com um “ Não há terra menos conhecida nem mais caluniada do que a Galiza”
Mas, o que é a Galiza de Anselmo de Andrade? Por resumir: é um jardim delicioso, um paraíso em estado puro, só natureza sem cultura, cheia de superstição, sem nenhum dos vultos que iluminam outras terras europeias. 
Quando Andrade viaja à Galiza já Rosalia publicara Cantares e Folhas Novas; e  Curros Aires da miña terra. Mas isso não impede Andrade perceber que a Galiza não tem classe dirigente e afirmar: “ Se a poesia escrita escasseia na Galiza, é porque as artes e as literaturas não medram, por via de regra, senão nos países fortes, poderosos e ricos. Não é nas classes trabalhadoras, que constituem toda a população galega, que as musas costumam escolher os seus favoritos” e se não há uma literatura forte e rica, não importa porque “há um povo”, um povo que é plenamente celta, quer nos costumes, nos cantos ou na língua porque o latim “obedecendo às leis dos antigos idiomas célticos, transformou-se no galego … e no português, mais tarde distanciado da linguagem galega pelas palavras árabes ou francesas, e também pelas modificações provenientes de se haver tornado o português língua nacional e literária, não tendo passado o galego, por assim dizer, de idioma rústico”. Isto é, uma língua precisa um Estado. 

As Cidades

Como vê Anselmo der Andrade as nossas cidades? Só repara em três
Ferrol: “ Há um século era apenas uma povoação de pescadores. Hoje é um enxame de soldados, de marinheiros e de carpinteiros de navio” comunicada com A Corunha por “vapores que fazem carreiras diárias”
A Corunha: A Corunha, segundo Andrade, “não tem quási nada de espanhol, nem nos habitantes, nem nos costumes, nem no modo de viver”
Santiago: Compostela não é cidade do agrado de Andrade “ Não há uma cidade tão triste em toda a Espanha. Nem barulho se faz. Nas ruas não passam carruagens nem cavaleiros. As janelas estão sempre fechadas. Parecem deshabitadas as casas. De dia anda-se num cemitério. De noite, quando as portas da cidade se fecham, fica-se num sepulcro”

A Corunha, segundo Andrade, “não tem quási nada de espanhol, nem nos habitantes, nem nos costumes, nem no modo de viver”

Como pode ver-se não é Santiago cidade do agrado de Andrade. Mas também não parece muito acertada a sua observação de, na altura em que ele escreve, as portas da cidade se fecharem, simplesmente por não haver já portas.  Em 1800 desaparece o arco interior da Porta do Camiño; em 1822 derruba-se a Porta de San Roque; em 1830 desaparece o arco da Porta Faxeira e seguem as portas da Mámoa, da pena, San Francisco e a Trindade. En 1835 desaparece o arco principal da Porta do Camiño. 
Se a cidade não tem nenhum encanto, a catedral não merece a celebridade “com que aprás à fama condecoral-a. A fachada principal é simplemente vulgar … a das Platerias é apenas extravagante”


Os habitantes
Se na descrição das cidades não parece muito acertado, na do tipo galego mostra Andrade toda a acumulação de tópicos negativos. O galego é desconfiado, tímido, avaro, conservador. Só pensa em juntar dinheiro e, quando sai da terra é só para isso, para enriquecer fazendo todos os serviços que os outros não querem fazer porque para o galego não há diferença na categoria do trabalho, contanto que lhe paguem.

Segundo ele emigra sem saudades pois não tem o amor da pátria, tem o amor da terra e da propriedade

É nessa ambição que Anselmo de Andrade justifica a emigração. Segundo ele emigra sem saudades pois não tem o amor da pátria, tem o amor da terra e da propriedade que “é a ambição de toda a sua vida. Juntar para isso é o fim da emigração” 
Não deixa de surpreender a Andrade o facto de, cada primavera, milhares de galegos, reunidos em caravanas, porem-se “a caminho das duas Castelas e da Andaluzia, sem levarem mais nada além do seu corpo e da sua foice”. Partem para longe, ceifar as searas dos outros. Isto é o que conta Andrade. O que ali acontece, nas Castelas e na Andaluzia, isso já o sabemos por Rosalia: 
cando van, van como rosas;
cando vén, vén como negros. 
E também sabemos que hoje, como no tempo de Andrade, muitos galegos e muitas galegas continuam a ceifar nas searas dos outros esquecendo as próprias curtinhas.


 

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