Violência sexual como método de tortura era prática disseminada durante a ditadura, constata CNV

Relatório da Comissão Nacional da Verdade relata que crueldade de métodos era intensificada contra mulheres, submetidas a estupros, desnudamento forçado, abortos provocados e separação e tortura dos filhos por parte de agentes do Estado brasileiro. 

Dilma EFE
photo_camera Dilma Rouseff [Imaxe EFE / Operamundi]

A violência sexual como método de tortura física e psicológica como política de Estado vitimou mulheres e homens durante a Ditadura Militar, constituindo graves violações aos direitos humanos e crimes contra a humanidade. Para elas, entretanto, a crueldade era intensificada pelo fato de serem mulheres. Depoimentos das sobreviventes colocam em evidência os múltiplos métodos usados pelos agentes da repressão:  estupros, humilhação ininterrupta, desnudamento forçado, abortos provocados, separação dos filhos e tortura contra os companheiros e familiares.

O cenário desumano é detalhado no capítulo “Violência sexual, violência de gênero e violência contra as mulheres e crianças” do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado na última quarta-feira (10/12). O texto utilizou como base a definição de “discriminação contra a mulher” da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), definida como toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais.

Com base em testemunhos como o de Lucia junto a investigações do grupo de trabalho “Ditadura e Gênero”, a CNV constatou que a violência sexual praticada por agentes públicos

Lucia Murat contou em depoimento à CNV em maio ter sido vítima de tortura sexual e que poderia ter provocado sua própria morte caso tentasse se proteger. “Eu ficava nua, com o capuz na cabeça, uma corda enrolada no pescoço, passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois, se eu movimentasse os meus braços para me proteger, eu me enforcava e, instintivamente, eu voltava atrás”.

Com base em testemunhos como o de Lucia junto a investigações do grupo de trabalho “Ditadura e Gênero”, a CNV constatou que a violência sexual praticada por agentes públicos ocorria de forma disseminada,  com registros que coincidem com as primeiras prisões, logo após o golpe de Estado, constituindo instrumento de tortura e violação dos Direitos Humanos.

“Inserida na lógica da tortura e estruturada na hierarquia de gênero e sexualidade, a violência sexual relatada por sobreviventes da ditadura militar constitui abuso de poder não apenas se considerarmos poder como a faculdade ou a possibilidade do agente estatal infligir sofrimento, mas também a permissão (explicita ou não) para fazê-lo. Foi assim que rotineiramente, nos espaços em que a tortura tornou-se um meio de exercício de poder e dominação total, a feminilidade e a masculinidade foram mobilizadas para perpetrar a violência, rompendo todos os limites da dignidade humana”, descreve o texto.

De acordo com o Estatuto de Roma, citado pelo documento, a agressão sexual, escravidão sexual, prostituição, gravidez e esterilização forçadas ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável constituem crimes contra a humanidade.

“Inserida na lógica da tortura e estruturada na hierarquia de gênero e sexualidade, a violência sexual relatada por sobreviventes da ditadura militar constitui abuso de poder"

Práticas como detenção arbitrária e tortura, por meio de choques nos órgãos genitais, golpes nos seios e no estômago para provocar aborto ou afetar a capacidade reprodutiva, introdução de objetos e/ou animais na vagina e/ou anus e choque elétrico nos genitais foram cometidos contra as mulheres presas em diversos locais: DEIC, DOI-CODI, DOPS, Base Aérea do Galeão, batalhões da Polícia do Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, CISA, delegacias de polícia, Oban, hospitais militares, presídios e quartéis. A violência sexual nesses locais era empregada como arma.

As mulheres, militantes ou não, incluindo religiosas, eram tidas como merecedoras de violações pelos militares, formados numa ótica sexista e homofóbica. Para as militantes, porém, a situação se agravava. Contra elas a tortura também era empregada para arrancar delações sobre namorados, maridos e companheiros. Entre os casais presos, era comum que a mulher fosse violentada na frente do parceiro, imobilizado no pau de arara e também vítima de violência.

Márcia Bassetto Paes relatou ao CNV a tortura sofrida quando foi presa com Celso Giovanetti Brambilla pelo Deops/SP, em 28 de abril de 1977. “Na questão da mulher, a coisa ficava pior porque… quer dizer pior, era pior para todo mundo, não tinha melhor para ninguém, né? Mas [...] existia uma intenção da humilhação enquanto mulher. Então, o choque na vagina, no anus, nos mamilos, alicate no mamilo, então… eram as coisas que eles faziam. Muitas vezes, eu fui torturada junto com Celso Brambilla porque a gente sustentou a questão de ser noivo. Eles usaram, obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto vínculo, além da militância, que seria um vínculo afetivo também, para tortura”.

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