CONVERSAMOS CON ELA

Vera Duarte, uma mulher de causas

Vera Duarte é poeta e romancista. Foi a primeira mulher a entrar para a Magistratura em Cabo Verde. Seu trabalho em defesa das mulheres cabo-verdianas alia-se ao gosto pela escrita, tomada também como uma forma de luta da mulher. Com ela falamos, da sua escrita e do seu compromisso. E publicamos um texto feito a propósito para o Sermos, unha carta aos seus conterrâneos da Galiza.

Vera Duarte
photo_camera Vera Duarte

Publicou “O Arquipélago da Paixão” (2001), A Candidata (2003) “Preces e Súplicas ou os Cânticos da Desesperança” (2005), “Construindo a utopia” (2007) e “A palavra e os dias” (2013). Deste diz Christina Bielinsky, autora do prefácio do livro, “um caleidoscópio que, girando em torno das ilhas, das mulheres, das outras lutas, da educação, dos espelhos, da casa e da própria crónica, apresenta os diversos laços da escritora com as demandas que o existir apresentou e apresenta para ela".

Você define-se como uma mulher de causas (“sou e acho que vou continuar a ser sempre uma mulher de causas”) Quais são as causas de Vera Duarte?

Acredito que a primeira causa que me interpelou foi a “injustiça” de ver um jovem morrer porque os pais não tinham dinheiro para o tratar. Isto foi desde os tempos do liceu, antes de completar os 14 anos. E logo a seguir a revolta de constatar que as mulheres eram espancadas pelo “seus homens” por não lhes “obedecerem”. Depois foi a discriminação racial e, com a ida para a Faculdade de Direito, da Universidade Clássica de Lisboa, a luta pela independência das colónias. Finalmente, todas as causas através do ativismo em prol dos direitos humanos, na Comissão Africana para os Direitos do Homem e dos Povos (CADHP), na Comissão Internacional de Juristas e na Organização das Mulheres de Cabo Verde entre outros.

"Toda a minha obra em prosa e verso tem muito a ver com a minha luta pelos valores em que acredito"

E qual a importância dessas “causas” na sua literatura?

Fundamental. Acredito, e os estudiosos da minha escrita dizem isso, que toda a minha obra em prosa e verso tem muito a ver com a minha luta pelos valores em que acredito e, penso, deveriam ser apanágio da humanidade para uma vida mais feliz para todos. Defendo que a escrita não deve ser inócua. Ela deve transmitir beleza, valores e ter causas.

Na recente história de Cabo Verde não é infrequente as escritoras, os escritores, exercerem postos de responsabilidade política. Por acaso a transformação social tem algo a ver com a literatura? 

Acho que tem havido uma relação íntima e dialética entre a literatura e a transformação social em Cabo Verde. Veja só a Literatura Claridosa, e mesmo a anterior a Claridade, que lançou as bases da nação social cabo-verdiana e como, a partir de movimentos literários cada vez mais ousados, passando pela escrita de contestação à escrita de libertação, chegamos à independência. Também as transformações sociais, máxime a proclamação da independência, influenciaram decisivamente na literatura produzida nas ilhas. Pessoalmente, eu fui convidada para a “política” depois de me ter manifestado pela escrita e pelo ativismo social.

"Espelho na minha escrita esta luta constante pela construção de uma sociedade mais humana, sem discriminações, sem violações e violências, sem tráfico negreiro, sem fome, enfim, sem injustiças"

Na sua vida profissional na magistratura, na sua responsabilidade como Ministra da Educação, necessariamente viu situações de pobreza, de violência contra as mulheres, de discriminação racial. Que importância têm estes fatores na sua escrita?

Tanto antes como depois as situações que descreve foram determinantes para a minha formação e a minha tomada de posições, também através da escrita. Eu defendo a “arte pela vida” e acredito que espelho na minha escrita esta luta constante pela construção de uma sociedade mais humana, sem discriminações, sem violações e violências, sem tráfico negreiro, sem fome, enfim, sem injustiças.

Em 2003 o seu romance A Candidata foi galardoado com o prémio Sonagol de literatura. O livro conta a história da “formação e do evoluir da conscientização política de uma heroína que se afirma como uma mulher ativa, solidária e participativa quer na luta de participação nacional, quer na luta pela defesa dos direitos humanos a nível global” em palavras de Corsino Fortes (lembrado não há muito nestas mesmas páginas). Nesta esteira, Teresa Sofia Fortes perguntou-lhe para a revista Semana-on-line: Acha que um dia vamos ter uma candidata à Presidência da República em Cabo Verde? Isto foi em 01-10-2005. Quase 10 anos mais tarde, mantém você a mesma linha argumental?

Com certeza. Apesar de ainda não termos tido nenhuma candidata presidencial, as condições já estão reunidas para tal. Basta ver que o partido da governação elegeu recentemente uma mulher para a sua liderança. Mas há muitos anos que vem havendo movimentações no sentido de haver uma candidatura de mulher. Eu própria já fui muitas vezes instada a candidatar-me.

Na Galiza existe uma importante comunidade de cabo-verdianos e mesmo a cabo-verdianidade se faz notar em manifestações como as do grupo Batuko Tabanka. A pedimento de Sermos Galiza escreve-lhes isto

Carta à diáspora cabo-verdiana na Galiza

Conterrâneos!

Galiza é terra de poetas inspirados e trovadores de finas melodias.
Um dia hei-de ir a Galiza escutar a ressonância de “Un canto a Galicia” no meio de uma roda de batuque e funaná.
Nos caboverdianos nascemos de fora para dentro e por isso nenhuma terra e nenhuma cultura nos é verdadeiramente estranha. 
Na alma do nosso povo está inscrita a sodade de terra longe e, paradoxalmente, quando estamos longe é a sodade di terra que nos consome.
Desde a aventura inicial que trouxe para estes dez pedaços de terra, destroços talvez da perdida e mítica Atlântida, homens e mulheres oriundos da Europa (portugueses, espanhóis e genoveses), da África (povos dos rios da Guiné), que se começou a formar um povo que tinha dentro dele a reminiscência das terras dos seus ancestrais.
E foi fazendo jus a essa vocação antiga de regressar às terras de origem que, rapidamente, o povo mestiço que se formou nas ilhas, começou a diasporizar-se pelas terrar da Europa, pela terras da África e pelas terras das Américas.
A nossa imigração na Galiza é um pedaço deste todo que é Cabo Verde, um pequeno país, de escassa população que, malgrado o reduzido das suas dimensões físicas, tem conseguido chegar aos quatro cantos do mundo.
Porquê?
Pela grandeza da sua alma, pela grandeza da sua cultura e pela infinita dimensão da sua sodade e da sua morabeza lá onde quer que esteja.
Como ser mestiço que tem na sua gênese contribuições das mais diversas raças e culturas, o cabo-verdiano consegue integrar-se positivamente nas comunidades de acolhimento, sem nunca perder a sua idiossincrasia, sem nunca perder a sua identidade.
Por isso também é olhado com respeito e consideração pelas comunidades de acolhimento, pela sua morabeza,  pela sua catchupa gostosa, pela morna e coladeira, pelo batuque e funaná, pelos seus poetas e escritores, pela sua gente amorável.
É claro que muitas vezes a xenofobia, a delinquência, e outros males fazem ruídos, por vezes ensurdecedores, nesse quadro.
Mas estes fenómenos negativos nunca irão ofuscar a essencialidade da cultura criola, da alma criola.
Os cabo-verdiano-galicences têm a sorte de estar a viver numa terra linda, que abriga esse tesouro da humanidade que é Santiago de Compostela e o seu Caminho.
Por isso tudo o que posso dizer-vos, do coração, é que trabalhem e se façam respeitar e admirar por aqueles que vos acolhem, dêem-lhes o melhor da vossa cultura e aproveitem, desassombradamente, dos tesouros que essa terra tão generosamente oferece.
O meu maior desejo é fazer o Caminho de Santiago. Um dia será!

Viva Galiza!

Fraternalmente.
Praia, 26 de Setembro de 2015
Vera Duarte

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