Odete Semedo. A discreta voz criadora da mulher

Em semanas passadas escritoras de Moçambique, Angola ou Cabo Verde ocuparam este espaço. Hoje é uma guineense, Maria Odete da Costa Semedo.
 

Odete Semedo, gañadora na categoría de Lingua Portuguesa.

A participação da mulher como voz criadora, nas literaturas africanas de língua portuguesa, é discreta se a compararmos com a produção realizada pelos homens no período anterior à independência.  Achamos a mulher, especificamente a negra, cantada e exaltada desde as primeiras manifestações literárias. Mas a voz feminina propriamente dita surge em meados do século XX com a são-tomense Alda Espírito Santo e a moçambicana Noémia de Sousa, poetas elas que mostram as adversidades vivenciadas pelas mulheres dos seus países, as agressões do sistema colonial,  a miséria, a dor encarada com dignidade. Mas a partir da independência desses países as mulheres foram aos poucos conquistando o seu espaço, aumentando a sua participação e enriquecendo o corpo das referidas literaturas. Hoje, temos muitos nomes e entre eles Odete Semedo em Guiné-Bissau, escritora e investigadora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas da Guiné-Bissau para as áreas de Educação e Formação e Ministra da Educação Nacional até agosto de 2015. 
Não é este o espaço para analisar as coordenadas poéticas de Odete Semedo, mas sim para visitarmos a sua obra, especialmente no que mais tem a ver com a problemática da Galiza, a língua.

A Lingua esvoaçada

No livro Entre o ser e o amar, o seu primeiro, Odete Costa Semedo explora o bilinguismo do seu país ao publicar os poemas em português e kriol, “de modo a proporcionar aos leitores um espaço de lazer, reflexão, crítica e encontro consigo mesmo”,em suas palavras. Também ressalta, “nem todos os poemas são apresentados em duas versões, dado que uns foram escritos originalmente em kriol e outros em português. E a tradução fá-los-ia perder a autenticidade”.

Segundo a própria Semedo em artigo intitulado Língua esvoaçada, na Guiné-Bissau “as línguas são muitas porque os grupos étnicos são vários, possuindo cada um a sua língua. Porém, no caso específico do meu país, para além das línguas usadas por cada um dos grupos étnicos, existe uma língua franca falada por cerca de 70 por cento da população de todo o país, o crioulo de base portuguesa, e uma língua oficial utilizada na administração e no ensino, o português, dominado por cerca de 12 por cento da população guineense” 

O relato de Semedo vai na direção do que Celso Cunha, o professor, gramático, filólogo e ensaísta brasileiro tão ligado com a Galiza,  afirmou em Língua, nação, alienação."o máximo a que pode aspirar a língua portuguesa em África, especialmente em Cabo Verde e Guiné Bissau é ser oficialmente o que ela sempre foi: não a língua transmitida, maternal, mas a língua adquirida, a segunda língua, veicular da administração, aprendida na escola e elo de ligação da elite cultural com um mundo maior."

A Língua que nasce solta

entre o ser e o amarA língua nasceu solta e desenvolta”, escreveu Odete Semedo, para continuar “nasceu virada para fora de si, irmanada com os lábios, os dentes e as cordas vocais que lhe deram a fala, a música, o grito e o silêncio, próprio da caverna onde livremente se encontra enclausurada. A língua serve-se dos olhos, de tudo ao seu alcance e fora dele para, sem papas, testemunhar a nossa relação com a vida. A língua é assim aquela coisa que nos permite, dentro do nosso silêncio, dizer tudo sem nada ter dito. Pois em língua e só nela carpimos os nossos mortos, contamos as nossas histórias e estórias, cantamos as nossas noivas quando rumo à casa do futuro marido deixa para trás a casa que a viu nascer e crescer. E só a língua permite a cada um dizer tudo, menos aquilo que se pensa, num jogo social em que cada um, munido do disfarce que julgar ideal, vai passando pelos círculos que a teia tece.
A língua, essa coisa esguia, nem sempre severa, guiada pela mente, vestida de uma mão ou, por vezes, de apenas três dedos — que podem ser de conversa —, vai dando largas às fantasias e aos sonhos.
A língua, na sua fantasia, tem vestidos: vestidos requintados e com enfeites de lantejoulas; vestidos com contornos de emoção, roupa de mendigo com remendos - mas nada para botar defeito; vestidos com bordados e afrontas que para muitos são heranças que os séculos lhe foram juntando num pé-de-meia. E com todos estes vestidos chega a bifurcar-se em língua do coração, do sentir, da alma e língua de contacto com o resto do mundo. Mas como a dificuldade é um mal dividido pelas aldeias, as línguas não são exceções à regra, lá têm elas o seu estilo de cooperação: a língua de viagens, a do contacto, acaba pedindo emprestadas as roupas de emoção da língua do sentimento; esta por sua vez vai deixando que a língua do sentimento faça uso de suas letras - com a permissão alfabetizada, é claro, de quem dita as regras do jogo.
Apesar de ter nascido solta e desenvolta, livre, ainda há quem pense ser dela o dono policiando no escuro a língua, não vá um mal-intencionado beliscar um acento ou acrescentar uma abertura em lugar incerto ou, ainda, quem sabe?, virgular o que deve ser pontofinalizado. Mas a língua não se importa que a façam voar em vozes e falas, que a enrolem em pergaminhos, folhas simples ou papel reciclado; o certo é que em silêncio ela grita e mesmo quando, inseguros, nela deitamos a mão... questionando... a língua é sempre testemunha”.

Perguntas de Odete que servem para a Galiza

Em que língua escrever
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar?

Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?
Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa

Que mal entendo
E ao longo dos séculos
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos

Eis a poética de Odete. Poesia que fala dos malogros do pós-independência, dos ideais não atingidos, das incertezas dos caminhos trilhados por um país em formação, da  instabilidade política guineense, da violência, a miséria e a dor de um povo que passa a possuir “olhos-que-já-não-acreditam”. 
Mas a poesia de Odete Semedo não se restringe às dores da vida e às reflexões metafísicas. 
“Quero ser a heroína
Do conto que inventares
Que firme segue o seu destino.

Prima o desejo de ser mulher, voz feminina que canta a vontade de ser protagonista dos seus sentimentos. Mesmamente como a Galiza.

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