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Literatura, a chave de Hirondina Joshua para abrir horizontes

Nascida em Maputo em 1987 está integrada em diferentes antologias de poesia e prosa. Publicou nos jornais Notícias e Sábado (Moçambique); no jornal Cultura de Angola, nas revistas Literatas e Soletras;  em TriploV e nas brasileiras: Acrobata, São Paulo Review, Sirrose, Òmnira. Participou das coletâneas da editora brasileira Sol Além Mar de conto e poesia nomeadamente: “Faces não reveladas” e “A voz da liberdade”.Integrada no Projecto Enegrescência,  ganhou a menção extraordinária no Premio Mondiale di Poesia Nósside edição 2014. Falamos com Hirondina Joshua.

Hirondina Joshua
photo_camera Hirondina Joshua

- Deixa-me ser o que eu sou é o título de um seu poema. O que é você?

- Uma interacção ou convergência biopsicossociológica, desconhecedora das forças que sustêm a minha verticalidade racional e que determinam e mantêm o meu equilíbrio emocional.

“Ler Hirondina é descobrir uma outra e nova poesia moçambicana a fluir nos braços do Índico” O que há de “novo” na sua poesia?

- A poesia trespassa sempre um preceito uníssono incondicional, indiferente da profundidade do alcance. Por isso, ela nunca é diferente. É apenas poesia – nada mais que a voz das nossas catarses mais recônditas.

… e o que há de “outra”

- Sou suspeita a responder tal questão, pois seria pouco verdadeira se comentasse o que é a minha poesia ou como ela é, não é questão de modéstia, mas sim da própria natureza das coisas, não “temos” a propriedade da nossa essência.

- Tem escrito que a principal doença dos africanos é “esconder o que é seu” Que quer dizer com isso?

- Explicar um texto que escrevi seria destruí-lo.

“Dizem que nós, africanos, temos conhecimento guardado nas portas do medo” 

Serve a literatura para romper as portas do medo?

- A literatura é um campo descritivo de ampla magnitude. Ela estabelece uma comunicação que detêm a atenção da dimensão mais sensível que dispomos. Tendo esse potencial, a literatura pode influenciar uma mobilização de consciência para a superficilização do conhecimento inerentes à sabedoria popular no contexto africano. Penso que a literatura é e pode ser uma chave para abrir horizontes. Ela muda; traz consigo descobertas do que se conhece e vice-versa, ainda que não pareça.

- Como pode ser isso?

Vou partilhar aqui algumas experiências: o meu mano come atum cru desde que leu o livro “O velho e o mar” de E. Hemingway. Quando publiquei o meu conto “As águas do Tempo” que narra um momento fotográfico de uma personagem “eu” num monólogo diante das águas da Gorongoza, os meus leitores disseram que queriam conhecer o Parque Nacional da Gorongoza. Incrível! Um lugar que nem mesmo eu conheço.
Isto mostra que pode sim, haver mudança através da literatura. A literatura pode matar assim como pode fazer viver. Depende de como a observamos e usamos. O facto é que ninguém sai de um livro como entrou.

“Um país jovem como o nosso precisa mais de sonhadores do que de sonhos” Quais são os seus sonhos para com o seu País?

- O meu sonho é que juventude moçambicana ousasse, com a sua arte e engenharia, refletir as cores exuberantes do arco-íris no cenário embaciado pela desigualdade moçambicana... E remetesse para um cenário de harmonia e convergência... que parecesse harmónico enquanto igual e diferente. E deste modo fazer-se fluir uma sociedade mais próspera.


HEGEMONIA
O vôo pode ser feito pelas mãos
pelos braços
pés
ou cabeça...
o vôo essencial
não tem corpo
pode não respeitar
o medo.
O vôo assim a fechar o círculo...
parece
transparente
nu
conhece o céu
a retina, e sua pupila
vibra na boca do coração de uma criança.
O vôo pode ser feito pelas mãos...ou pelos dedos...


CONCERTO COM DEUS
Música soberba
cor do espaço
massa
na transparência
da síbala
Mundo
distância
insólitos
pedaços
poços
feito
abismo
imo
na garganta
do Verbo.


Invenção

De súbito,
o desejo despeja-se
no corpo inventado,
há uma contemplação invisível.

É momento de luz:

 Uma mão pronuncia a voz do interior
 e outra subjacente vagueia
 no ar procurando o dom do amor.


“Ignoto Deo”

Pretendo chegar a Deus
Sílaba a sílaba
Com sangue puro
Como quem luta
E nunca soube o que é lutar
Sou inerme
Na carne da substância pura: 
Matéria do trabalho cósmico,
Fenómeno do fogo
“Stricto sensu”.
Chamo a Deus
No semblante amorfo da música.


Lua
verbo
corpo
manto
canto
abstracto
silêncio
seio
fundo
estrela
luz
vida
acção.


FRONTEIRA
(Aos meus três irmãos)

Como disse: Adélia Prado. 
"De vez enquanto Deus tira-me a poesia,
olho pedra e vejo pedra mesmo".
Numa noite qualquer o poema vai
se fazer em mim, infelizmente não
se procura um poema e encontrá-lo é engano.
A existência do poema consiste na
gestação interior de algo mais
exterior que a insânia e o poema
não nasce, surge. Antecede a
própria palavra, é o verbo do
sangue das carnes mundanas e do
insubmisso espírito humano.
O poema não chega a nascer
porque a noite inunda a
compaixão dos sentidos; e o dia
não cabe na mão de uma flor.
Os astros não se harmonizam com
o corpo celeste da palavra,
o poema não nasce.
Apesar da palavra gritar,
o poema inventa uma outra garganta e
esconde a voz.


ALTO-MAÉ QUE MORA EM MIM.

O bairro onde moro foi atropelado pelo tempo que forçosamente nega-se a empacotar outros destinos. Chama-se "Alto"...Quando a chuva que lhe corre é fria não nas suas temperaturas, escorregadia como a brisa que se ventea nos buracos felizes destas ruas serpenteadas em areias ao invés de betão.
Chama-se "Alto"...Este habitat de "latas" novas trazidas por sei lá quem a este paraíso urbano sem nome em nós, queremo-lo assim entre-alma e carne, passageiro, nomes são significados que não significam nada. Além de mais não os sabemos ler nem escrever e se soubessemos isto menos significaria. Em nós há um bairro onde moramos e nos moramos, vivemos e morremos a cada milésimo de segundo. E isto basta-nos. Basta-nos.

Tenho um alto-maé que vive em mim
alto-maé de casas que testemunham o silêncio a fúria em cinza
das moças que vestem saias que demarcam fronteiras suspeitas
com os rapazes que ao invés de calças vestem "tchuna boys"
suas roupas interiores são mais curiosas que o mundo.
Há muitos alto-maés em mim,
das flores que transpiram a volúpia nocturna perto da pelé-pelé
das rotundas de jardins quadrados
da gente alegre e mais esperta da cidade (alto-maé não me deixa mentir)
nem suas mesquitas e igrejas calam a voz de Deus aqui onde o sol se senta
mesmo de noite
do negro mercado negro que devia se chamar lua ao invés de “estrela” pois nela embarcam todas ânsias daquelas gentes, muitas delas não daqui,
da padaria Moçambique que desde sempre alimentou a esperança de um melhor pão,
dos barulhos quentes dos ralis antes do fim de semana
do sapateiro que canta com o seu martelo abingalado
de alguém a escrever um verso que talvez não mude nada, mas um verso é um verso,
um verso é um universo
o inverso disto é que não era é humano
cada um com o seu alto-maé.
Este é o meu. Este foi o que me deram. Este é o que vejo e que me olha sempre.
De um outro não preciso.
Daqui consigo sentir a voz de todos alto-maenses
porque o som não tem gente na sua metafísica
nem um bairro existe quando não se tem por existir
repito: cada um com o seu alto-maé, e este meu é altíssimo em mim.
 

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