ENTREVISTA

Alexandra Simeão, exercer cidadania também na Literatura

Alexandra Simeão, nasceu em 1966 em Luanda. Foi Vice Ministra da Educação para a Acção Social, no âmbito do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional, entre 1997 e 2008. Em 2014 publicou o seu primeiro “atrevimento”, um livro cujo título é "Kalucinga".

Alexandra Simeão
photo_camera Alexandra Simeão

Alexandra Simeão, nasceu em 1966 em Luanda. Foi Vice Ministra da Educação para a Acção Social, no âmbito do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional, entre 1997 e 2008. Em 2014 publicou o seu primeiro “atrevimento”, um livro cujo título é "Kalucinga". É expressa a sua vontade dizer o que pensa, defender o que acredita, ser útil, exercer cidadania, praticar a solidariedade e chamar a atenção para os aspetos que não correm bem na sociedade, sugerindo mudanças. 

Como analista sócio-política, poderia resumir para os leitores de Sermos Galiza o panorama do país?

Angola comemora, agora em Novembro, 40 anos de Independência. Uma Independência atribulada, cheia de episódios dolorosos provocados por uma Guerra que nenhum de nós mereceu. Um país lindo, generoso, jovem e que precisa de encontrar um caminho que nos conduza a uma gestão mais justa, equitativa e inclusiva.

Neste contexto, qual o principal desafio?

Não podemos pretender atingir um patamar de excelência, enquanto o nosso rendimento nacional não se transformar em progresso social. Temos imensos desafios. Mas o principal é começar por construir a NAÇÃO que nos falta, em que primeiro sejamos Cidadãos e só depois militantes.

O mundo encolheu e é hoje uma aldeia global. Mas a escola continua a mesma, que pretende tratar todos como iguais pela negativa por via da massificação, com um ensino que desincentiva o fortalecimento da lógica

Nalguma ocasião tem expressado que o século XXI “exige uma escola nova, mais abrangente, que inclua valores, ética, cidadania, honra”

Esse desafio foi lançado por mim no TEDx Luanda, cujo tema era o PODER DAS IDEIAS. De facto não podemos continuar a alicerçar a democracia numa escola que é a mesma que foi implementada com a Revolução Industrial. Em 200 anos mudaram as relações de Mercado, as convicções sociais, as ideologias políticas, as relações entre as pessoas. O mundo encolheu e é hoje uma aldeia global. Mas a escola continua a mesma, que pretende tratar todos como iguais pela negativa por via da massificação, com um ensino que desincentiva o fortalecimento da lógica. Não lograremos sucesso se não conseguirmos construir uma escola nova. Onde as crianças sejam antes de tudo cidadãs. Que não se espere até á sua maioridade para que ganhem consciência política. Que na escola primária a Constituição, a Ética, a Honra, a Fraternidade, a Igualdade de oportunidades á nascença façam parte do curriculum.

Como pode ser isso quando a ideologia neoliberal prima na organização dos sistemas educativos e o que prevalece é a obtenção de benefícios económicos?

Temos demasiados técnicos, mas não temos melhores cidadãos. Um povo é o reflexo da educação que o Estado promove. Então é preciso preparar as crianças para que aprendam a discordar sem lhes dar um comprimido para as acalmar, é imperativo que a escola saia do bairro para que a globalização seja uma normalidade na cabeça dos cidadãos do futuro. É preciso mudança urgente se queremos acompanhar os desafios do século XXI sem ficar aquém das expectativas que os nossos filhos já têm.

Um país que não respeita a sua história perde os exemplos para o futuro

O que quer dizer quando afirma “Tenho medo que os meus netos acreditem que Luanda não tem história”? Tao forte é a assimilação, a descaracterização?

Infelizmente a parte histórica da cidade de Luanda e de outras cidades tem sido destruída pelo voraz apetite imobiliário. Um país que não respeita a sua história perde os exemplos para o futuro. E infelizmente por mais campanhas que a sociedade tenha feito contra estas demolições o processo não tem parado. Por essa razão temo que os meus netos pensem que Angola nasceu em 1992.

…. e que medidas tomar para “caracterizar” de novo Angola?

Essa pergunta é óbvia: Preservar. É um compromisso com a nossa identidade!

Não é fácil ser mulher em nenhuma parte e nalguns lugares é francamente difícil. Como é ser mulher em Angola?

Felizmente Angola não é o pior dos mundos para as mulheres. Temos representatividade numérica e institucional. Mas como a maioria das mulheres são pobres e sem escolaridade, fica muito difícil falar de igualdade de direitos. Os direitos podem existir formalmente mas não se materializam na vida, nem na mesa das pessoas de forma automática, pois dependem de um emprego com remuneração justa, este depende de um anterior acesso a uma escolaridade com qualidade e este depende de ter uma família que possa velar para que a criança não tenha morrido antes dos cinco anos, tendo em conta que somos o segundo país do mundo com a maior taxa de mortalidade infantil.

O poder da mulher tem que crescer com ela desde a infância

Quais as perspetivas de futuro em termos de igualdade de direitos?

São vários os inibidores que colidem com o desejo de ver mulheres angolanas dignificadas na sua maioria. E a maioria destes constrangimentos resultam da prévia incapacidade para planear a médio e longo prazos e com a adequada e realista integração nas prioridades do OGE (Orçamento Geral do Estado). Não é com programas de combate à pobreza, que não são sustentáveis, nem com leis de proteção da mulher. O poder da mulher tem que crescer com ela desde a infância.

Falemos de sua obra literária. Kalucinga, é o seu primeiro livro, dado à luz após 15 anos de trabalho. Conta a história de Azarado, um menino da rua, que com força e persistência acaba por chegar a presidente da república. Por quê a presidente?

Porque em África, independentemente do modelo constitucional quem manda são os presidentes. Então só eles têm o poder para decidir. Azarado queria um mundo melhor, sem Fome (aliás nem se justifica num país como Angola que é o Segundo produtor africano de petróleo) e que nos últimos treze anos teve uma das maiores taxas de crescimento do mundo, que infelizmente não fez diminuir os maus índices de desenvolvimento humano que temos, nem criou condições para um indesmentível progresso social. Kaluncinga não demorou 15 anos a escrever, demorou 15 anos a ser editado. Eu queria que ele nascesse em Angola e só foi possível concretizar esse sonho em 2014.

Que três autoras ou autores angolanos, ou obras, recomendaria aos leitores de Sermos Galiza e por que razão?

O VENDEDOR DE PASSADOS de José Eduardo Agualusa, porque mostra a realidade dos nossos novos ricos que a maioria enriqueceu sem história e a proveniência do seu dinheiro é sempre nublosa.  Agualusa é hoje um dos nossos mais internacionalizados escritores e este feito tem como causa a sua atenção aos direitos das pessoas e à sua dignidade.

Os TRANSPARENTES de Onjaki , porque mostra de onde viemos, qual foi o dia em que muitas das nossas expectativas morreram e permite desenhar um futuro. Um escritor que desde muito jovem vem mostrando uma inovação estética na forma como defende as palavras.

A CABEÇA DE SALOMÉ de Ana Paula Tavares, é um conjunto de textos sobre a realidade da Guerra em Angola. É uma poeta de coração que não deixa morrer a oralidade das nossas tradições mais puras. A escrita de Ana Paula Tavares tem som, cheiro, sentimos a realidade na pele.

Finalmente, deixe-nos algo da sua escrita para os leitores de Sermos Galiza?

Deixo aqui um pedaço de Kalucinga:

“Azarado sentia uma dor imensa cada vez que via uma injustiça. A zungueira que chorava o jantar dos filhos que tinha sido levado como prova do crime - a bacia das bananas – pelos agentes de autoridade, dizia que tinha vindo de um sítio onde a vida já não existia. Pelas terras do fim do mundo arrastara os filhos e a miséria para longe da Guerra que se vivia naquelas bandas. Tinha andado tantos dias, que hoje, tantos anos depois, ainda lhe doíam os pés. Um dos filhos morreu na fuga, de fome e cansaço. Foi enterrado num campo onde as flores cresciam brancas e o rio cantava. Provavelmente nunca mais voltaria a pôr os pés na campa deste desafortunado. Era demasiado longe e doloroso. Hoje vivia em baixo de duas chapas, na companhia dos filhos que sobraram, tinham morrido mais dois entretanto, e com um tio velho que não via de um olho, que não sabia que o colono já tinha ido embora e por isso o culpava pela continuação da sua desgarrada vida. A zungueira de nome Felismina, herança de uma vizinha que lhe deu o vestido para a sua comunhão, acordava todos os dias às quatro da manhã, dorida pela velhice do luando e palmilhava a cidade toda, apenas para jantar. Do pai dos filhos nunca mais ouviu falar. Perdeu-se a caminho da vida. E fazia este percurso todos os dias, sem amargura, pois tinha deixado de sentir. Ficou oca. Todos os dia procurava encontrar um argumento que a retirasse do estado de descrédito, porque era como se o Primeiro Dia do Verbo não a tivesse atingido. Vivia  na escuridão. Sentia que a sorte lhe era indiferente, como são indiferentes os pés que pisam na areia das praias desertas. Na sua vida já não havia poente, não existia harmonia. E à noite acreditava que o milagre da libertação chegaria nesse dia, e, se Deus quisesse, no dia seguinte acordaria morta, na outra margem da vida feliz, porque tinha deixado de sofrer. Mas isso nunca aconteceu. O destino era teimoso e cumpria-se até ao fim. Não se muda porque sofremos mas porque surge uma oportunidade e acreditamos nela. Mas ela não via nenhuma oportunidade, à sua frente, ao lado. Tudo o que via era a bacia das banana, único património, investido com dinheiro de que não se honrava, pois sentia-se usada nas partes íntimas, por um homem que não chegou, sequer, a conhecer o nome, mas que lhe possibilitou comprar a bacia das bananas. Olhou para Azarado, que enfrentara os agentes de autoridade, em defesa da bacia – que não era prova de crime, porra nenhuma, era o jantar dos filhos! – E disse:

Não vale a pena. Eles são mais fortes. Amanhã vendo duas chapas, durmo no relento e compro uma nova bacia com bananas. Amanhã os filhos jantam.”

Fotografías: Alexandra  Simeão
 

Comentarios