'O Home que Matou Liberty Valance'

Quanto à construçom do complemento direto (CD), há um subtil abismo a separar o castelhano do galego genuíno: enquanto em O home que matou Liberty Valance, Liberty Valance é, sem dúvida, o morto, em “el hombre que mató Liberty Valance”, Liberty Valance é, sem dúvida, o matador. Ao contrário do que acontece em castelhano, no galego tradicional, como nas suas covariedades lusitano e brasileiro, exceto diante de pronome pessoal, da palavra Deus ou nos raros casos em que se pode produzir ambigüidade*, o CD nunca é introduzido pola preposiçom a (“A filha muito admirava o pai”, “Convidamos as amigas”, “A osteoartrite afeta os idosos”), nem sequer diante de nome próprio (“Admiro Castelao”, “O Ranse só aparentemente matou Liberty Valance”), o que podemos enquadrar numha correlaçom do tipo “Ela saudou o presidente”, “Ela saudou o José”, “Ela saudou José”. Assim, numha seqüência “Nome1 + Verbo transitivo + Nome2”, o CD é, sempre, Nome2, de forma que, em bom galego, a construçom equivalente da castelhana “el hombre que mató Liberty Valance” é, necessariamente, “o home que Liberty Valance matou”. Tenhamos em conta que o uso generalizado de preposiçom para introduzir o CD representa um traço morfossintático peculiar do castelhano, e que, enquanto tal, com a elevada freqüência que ele atinge na língua centro-peninsular, nengumha outra língua románica pratica, nem um galego livre da tutela do castelhano deve praticar. O uso da preposiçom "a" para introduzir o complemento direto é um traço do castelhano Assim, o célebre filme The Man Who Shot Liberty Valance (1962), dirigido por John Ford e protagonizado por James Stewart e John Wayne, se em castelhano apresenta o título preposicionado El hombre que mató a Liberty Valance, já, sem preposiçom, se intitula L’home que va matar Liberty Valance em catalám; L’Homme qui tua Liberty Valance, em francês; L’uomo che uccise Liberty Valance, em italiano, e, naturalmente, O Home(m) que Matou Liberty Valance, em galego-português. Há já cerca de quinze anos que o Prof. Freixeiro Mato, primeiro na magnífica Gramática da Lingua Galega e, posteriormente, no oportuníssimo livro divulgador Lingua de Calidade, explicou os fundamentos da formaçom genuína em galego do CD, alertou para a sua histórica (e recente) desvirtuaçom por interferência do castelhano e exortou os galegos cultos a restaurarem a sua construçom tradicional, em sentido convergente com o capacitante luso-brasileiro e contrastante com o ameaçador castelhano. Por isso, é de lamentar que o mundo do oficialismo, ainda hoje, em larga medida, se recuse —por ignoráncia, preguiça ou teimosia?— a restaurar este traço caracterizador e capacitante do galego tradicional. Insistimos: um traço que, nom há muito tempo, sem a atual pressom abafante do castelhano, era galego comum: tenho diante dos olhos a reproduçom do cartom comemorativo de um banquete galeguista realizado na primeira metade do séc. XX, e nele pode ler-se “[Xantar con que os rexionalistas galegos] agasallan os ilustres rexionalistas catalás”. Hoje, infelizmente, sob a tutela do oficialismo, seria provável umha fórmula deturpada do tipo “[Xantar *co que os rexionalistas galegos] agasallan *aos ilustres rexionalistas cataláns”... Nesta linha, a RAG, embora restrinja o uso da preposiçom a com o CD, ainda nom a elimina diante dos nomes próprios (e, no seu sítio internético, escreve, p. ex., “Os Premios Barbantia recoñecen a Clodio González”), e, por sua vez, a editora Galaxia publica agora um romance policial, de Arantza Portabales, com o título O Home que Matou a Antía Morgade (anúncio no Nós Diario de 9.2.2023, p. 7), cuja formulaçom só se revelaria gramatical se esse a fosse artigo, o que, aqui, nom parece verosímil (porque o oficialismo, por submissom ao castelhano, nom normaliza o uso —normalíssimo na língua espontánea de grande parte dos galegos— do artigo definido diante dos nomes de pessoa: “Vimos o José / a Maria”). Felizmente, em sentido contrário, podemos contar com o exemplo encorajador dos redatores do Nós Diario, os quais, de forma admiravelmente constante, efetuam umha construçom genuína dos CD, de modo que, nesse mesmo número do jornal, na p. 26, lemos: “O golpe de Estado de 1936 obrigou Plácido Castro ao silencio”. Eis um galego de qualidade, plenamente regenerado e convergente com o luso-brasileiro, que entronca com o passado e aponta para o futuro! ----------------------------------------------------------------------------------------------------------- (*) Ex.: "Ouviu-te a ti"; "Louvou a Deus"; "Chamou a Paula ao Nuno", "Worthington orgulhava-se do velho automóvel e tratava-o como a um bebé" (para se contornar a interpretaçom "e tratava-o como um bebé o trata").