Crónica desde o Donbas

Os tanques russos atravessaram a fronteira há um ano

Um ano depois da escalada do conflito, a situação na cidade de Donetsk piorou. Desde fevereiro de 2022, segundo números das autoridades pró-russas atualizados a 20 deste mês, morreram mais de 662 civis só na região de Donetsk debaixo dos projéteis da artilharia ucraniana. Os bombardeamentos provocaram ainda ferimentos em 2.460 civis. 
Loja destruída junto ao mercado coberto (Foto: Bruno Carvalho).
photo_camera Loja destruída junto ao mercado coberto (Foto: Bruno Carvalho).

Há um ano, quando os soldados russos atravessaram a fronteira, o mundo descobriu que havia uma guerra na Ucrânia. Invasão, segundo Kiev, ou operação militar especial, segundo Moscovo, para lá da semântica, são os civis que pagam a fatura de uma guerra que, no Donbass, leva já praticamente nove anos.

Dezenas de crianças escorregam por uma colina cheia de neve no bairro de Leninsky, em Donetsk. Podia ser apenas mais um dia num país de brancos invernos, desses que ficam bem em qualquer postal de viagens, mas ouvem-se explosões ali a poucos quilómetros. Como todas as pessoas, também estas gostam da neve e das brincadeiras próprias da estação. Algures, numa rua aparece num boneco de neve. Não parece mas é uma cidade em guerra.

É em Donetsk que Olga vive e trabalha. Com apenas 26 anos, nunca soube o que é viver em paz desde que chegou à idade adulta. Lembra-se do dia em que um rocket caiu diante da universidade provocando uma explosão que estilhaçou todos os vidros das janelas. Foi em 2014.

Traz um pesado casaco de inverno que revela as marcas da falta de água na cidade. De três em três dias, ao fim da tarde, a cidade fica deserta porque é o esperado encontro, que nem sempre acontece, com a água a correr na canalização. Com alguma sorte, há pressão suficiente para fazer funcionar a máquina de lavar a roupa, com algum azar, há que esperar mais três dias.

É 23 de fevereiro e, todos os anos, Olga oferece uma prenda ao seu pai neste dia. Invariavelmente, desde 1919, as populações de vários países da ex União Soviética celebram o Dia do Exército Vermelho. Na Rússia, desde o colapso deste Estado socialista, a data leva o nome de Dia do Defensor da Pátria e são muitos os que homenageiam amigos e familiares que fazem ou fizeram parte das forças armadas.

Mas há um ano, neste dia, Olga, como boa parte da população da maior cidade do Donbass, estava em pânico. A 18 de fevereiro, as autoridades das auto-proclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk anunciaram a evacuação da população e, três dias depois, Vladimir Putin reconheceu a independência destes territórios.

O ambiente era de cortar à faca, recorda esta jovem de 26 anos. Do outro lado da linha da frente de uma guerra civil que durava já desde 2014 estariam cerca de 125 mil soldados ucranianos e, junto à fronteira com o Donbass, a Rússia concentrava uma força igualmente imponente. “As pessoas começaram a fazer as malas para o caso de as tropas ucranianas conseguirem entrar na cidade. Outros compravam comida enlatada”, recorda.

Na manhã de 24 de fevereiro, há um ano, Olga soube ao raiar do dia, mal acordou, que as forças russas haviam entrado em território ucraniano. A primeira reação foi agarrar no telemóvel e falar com a mãe. Como muitos outros nos territórios pró-russos do Donbass, as duas celebraram o começo da intervenção a que Vladimir Putin chamou operação militar especial.

“Naturalmente, eu não queria que ninguém morresse, que morressem civis, não queria que sofressem aquilo que nós já sofríamos desde 2014 com os ataques ucranianos, mas a verdade é que estávamos felizes porque sentimos que era a única forma de pôr um fim à guerra civil”, sublinha Olga.

Bombardeamento sobre Donetsk

Primeiro um assobio, depois a explosão. Luís Hernando Muñoz estava no café Saloniki quando a artilharia ucraniana disparou 40 rockets simultâneos sobre o centro da cidade no domingo. Este colombiano, residente em Donetsk há 37 anos, depois de ter vindo aqui estudar numa universidade soviética, recebe-nos em sua casa depois do bombardeamento.

Como muitos outros, queixa-se dos permanentes ataques contra a população civil mas recusa abandonar uma cidade que sente como sua. 

 “Eu estava aqui em baixo porque tivemos um encontro com alguns amigos hispanófonos. Costumamos juntar-nos e chegou um ‘gringo’ de alcunha Texas com a sua mulher e outro rapaz de Barcelona. Estávamos a beber cerveja e a conversar quando começou o bombardeamento”, descreve. 

Nesse momento, no café, havia cerca de 10 pessoas e trataram de correr para se protegerem num lugar mais protegido do estabelecimento. Foi ali que recebeu uma chamada da mulher a contar que havia muito fumo em vários edifícios nas redondezas. “Caiu um projétil ao lado de um parque infantil e com esta vez são já três as vezes que foi atingido”. Enquanto conta o que aconteceu, ouvimos novas explosões. “Estão a disparar outra vez”, afirma Luís Muñoz desde a janela da sua casa no centro de Donetsk. “Provavelmente, agora são as baterias antiaéreas a funcionar”.

Na rua, a situação é caótica

A biblioteca Nadezhda Krupskaya foi atingida e tem um enorme cratera no telhado do edifício. Mais à frente, o edifício da procuradoria está em chamas e os bombeiros correm para tentar apagar o fogo. Várias lojas do mercado coberto estão completamente destruídas e, ao lado, o terminal de autocarros também foi atingido. São pelo menos 12 os feridos, entre eles duas crianças, e um morto.

Um ano depois da escalada do conflito, a situação na cidade piorou. Desde fevereiro de 2022, segundo números das autoridades pró-russas atualizados a 20 deste mês, morreram mais de 662 civis só na região de Donetsk debaixo dos projéteis da artilharia ucraniana. Os bombardeamentos provocaram ainda ferimentos em 2.460 civis.

Radiografia da linha da frente

Prossegue a pressão militar russa no Donbass com avanços nos arredores de Liman, Kupiansk e Seversk. Moscovo procura recuperar o terreno perdido na região de Kharkov, apesar da tentativa de mobilização de soldados ucranianos para reforçar a defesa nessa zona da linha da frente. Um pouco mais a sul, as tropas do Grupo Wagner tentam fechar o cerco à cidade de Artyomovsk (Bakhmut) com pesadas batalhas pelo controlo das localidades vizinhas de Berkhovka e Yagodnoye. Também em Marinka as forças russas batem-se para expulsar o exército ucraniano do centro desta cidade. Relativamente perto, em Ugledar, Kiev conseguiu fazer retroceder as tropas russas e os combates estão agora entre Pavlovka e Nikolsk. 

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As regiões de Lugansk, Donetsk e Crimeia, em roxo, no Donbass.

No campo diplomático, continuam as dificuldades dos Estados Unidos e da União Europeia para isolar a Federação Russa. Um novo encontro de uma alta figura de Pequim com Sergei Lavrov, ministro russo dos Negócios Estrangeiros, revelou uma sintonia cada vez maior entre os dois países. Depois da acusação norte-americana de que a China estaria a armar a Rússia, Pequim manifestou através de um dos seus mais importantes porta-vozes que são os Estados Unidos que estão a alimentar a guerra armando a Ucrânia. Segundo um artigo no Washington Post, a ordem mundial está em rápida mudança e que África e o Médio Oriente, assim como a China e o Irão, estão a estender a mão a Moscovo.

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