O país que volta a estar em luta

Passaram-se 10 anos desde umas das maiores manifestações de sempre em Portugal. A 2 de março de 2013, o movimento "Que se lixe a troika!" encheu o Terreiro do Paço, em Lisboa, e juntou milhares de pessoas nas principais praças do Porto, Braga, Aveiro, Beja e Coimbra. Nas manifestações, gritava-se contra as medidas de austeridade que o governo Português (Partido Social Democrata/CDS-Partido Popular) e a Troika (Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu) impuseram ao país. Medidas que cortaram rendimentos a pensionistas e funcionários públicos, enfraqueceram serviços públicos e empurraram jovens para o desemprego e para a emigração. Descontentamento social Após uma década, o descontentamento da população voltou: as greves intensificam-se na educação, na justiça, nos transportes públicos e na saúde. As reivindicações dos movimentos por uma "Vida Justa" e por uma "Casa Para Viver" ganham força. As lutas na rua contrastam com alguns indicadores económicos positivos recentemente registados no país. De onde vem, então, este descontentamento social? Do empobrecimento da população, da falta de respostas do Estado, e de uma austeridade que parece não ter abandonado o país. Em 2014, Portugal saía do programa de resgate financeiro que havia iniciado três anos antes. Contas feitas, durante o período da Troika, foram destruídos 332 mil postos de trabalho, o desemprego atingiu o valor mais alto das últimas décadas, alcançando 15,3% da população ativa, e a riqueza do país caiu 6,2%. Passada a crise, a economia portuguesa regista hoje valores muito diferentes. Indicadores com pouca tradução No ano passado, segundo dados oficiais, o país teve um crescimento de 6,7% do PIB, uma forte diminuição do peso da dívida pública, e a taxa de desemprego ficou nos 6%. No entanto, estes indicadores têm pouca tradução nas condições de vida da população portuguesa. O país onde os postos de trabalho escasseavam ficou para trás, mas os atuais rendimentos da classe trabalhadora não chegam para satisfazer as necessidades básicas. É isto que diz o manifesto do movimento Vida Justa. Originário dos bairros periféricos de Lisboa, o movimento levou milhares de manifestantes ao centro da capital no passado dia 25 de fevereiro, lembrando que "todos os dias os preços sobem, os despejos de casas aumentam e os salários dão para menos dias do mês". De semelhante modo, o movimento Casa Para Viver, sob o qual se agregam várias organizações que se manifestam no próximo dia 1 de abril, lembram: "Nós, que dependemos do nosso trabalho para viver, não conseguimos pagar as nossas rendas". Multiplicam-se as greves: da educação á saúde Também os profissionais da educação estão em luta. Fazem greves há mais de três meses exigindo melhores condições laborais. Entre as principais reivindicações está a recuperação do tempo de serviço que a Troika congelou e o governo do Partido Socialista, no poder desde 2015, nunca devolveu. Nos últimos meses, multiplicam-se as greves noutros setores que vão desde a saúde, até à justiça e aos transportes públicos. Nelas apela-se a aumentos salariais compatíveis com a subida dos preços provocado pela inflação. Se até 2020 Portugal viveu num clima de recuperação de rendimentos apoiado no lema "virar a página da austeridade", a pandemia da Covid-19 veio expor muitas das fragilidades do país: um mercado de trabalho altamente precarizado, um Serviço Nacional de Saúde depauperado, e condições de habitabilidade cada vez mais difíceis para uma grande parte da população. A crise inflacionista iniciada em 2021, e agravada em 2022 pela invasão da Ucrânia, juntamente com o aumento dos custos de acesso à habitação (taxas de juro e rendas), retirou poder de compra a muita gente, atirando as pessoas mais pobres para situações limite. Isto acontece ao mesmo tempo que os grandes grupos económicos engordam os seus lucros. Quem o diz é o Banco Central Europeu: "As subidas de preço, que contribuem para o agravamento da taxa de inflação, estão a servir para aumentar os rendimentos das empresas à custa da perda de compra dos consumidores". Hoje, tal como há 10 anos, a população portuguesa usa os espaços da democracia para mostrar que não se resigna frente à "inevitável austeridade", exigindo ao governo a defesa dos seus direitos e do seu bem-estar. Exige, acima de tudo, que o país se proteja dos interesses das minorias do poder e do privilégio.