Análise

Municipais no Brasil: regresso ao passado

No último domingo, as cidades mais populosas do Brasil elegeram seus prefeitos no 2º turno das eleições municipais. Confirmou-se a tendência que já se havia anunciado no 1º: poucos candidatos apoiados por Jair Bolsonaro ganharam nas urnas, mas o campo conservador conquistou uma vitória avassaladora.
Uma mulher vota nas eleições municipais do Brasil. (Foto: Getty images / Alexandre Schneider)
photo_camera Uma mulher vota nas eleições municipais do Brasil. (Foto: Getty images / Alexandre Schneider)

Apesar da mais alta taxa de abstenção da história, 23,14%, a pandemia não impediu que as eleições municipais no Brasil acontecessem, indicando o clima político nacional. O resultado foi bastante melancólico para as esquerdas, que não conseguiram somar forças para buscar votações mais expressivas. Todas as legendas do campo perderam prefeituras (Partido Socialista Brasileiro-PSB, Partido Democrático Trabalhista-PDT, Partido Comunista do Brasil-PCdoB e Partido dos Trabalhadores-PT), à exceção do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Nascido de uma dissidência do PT de Lula da Silva e ligado a causas identitárias, venceu em cinco cidades, incluindo uma capital.

Também acolhe Guilherme Boulos, formado em filosofia e coordenador de um importante movimento de moradia. Boulos foi derrotado em São Paulo, a maior cidade do Brasil, e desponta como liderança com pretensões nacionais.

Jair Bolsonaro não conseguiu formar um partido próprio a tempo para as eleições, e isso lhe prejudicou. Candidatos apoiados por ele em grandes capitais sofreram derrotas fragorosas. O tom do debate em geral foi cortês e o discurso do ódio perdeu terreno.

O Democratas (DEM), antigo Partido da Frente Liberal (PFL), conquistou 464 prefeituras e é considerado um grande campeão. O partido fundado por apoiadores da ditadura militar governava 1.036 prefeituras em 2000 e foi encolhendo durante a era Lula até chegar a 265 em 2016. Outros partidos com históricos e propostas semelhantes obtiveram robustas votações.

Tornaram-se, curiosamente, representantes do “centro” para muitos analistas. O advento de Bolsonaro parece ter empurrado todo o espectro político brasileiro –ficticiamente– para o centro. A defesa ferrenha da economia liberal pelo DEM também evoca a máxima thatcheriana “There Is No Alternative”. A “única alternativa” só pode ser neutra e, por afinidade semântica, o “neutro” se torna “centro”.

Bolsonaro poderia se tornar uma andorinha de um só verão. A grande onda extremista teria sido, então, apenas uma etapa de transição para dispersar o debate público e preparar o terreno para o retorno dos capitães. O presidente precisa recalibrar seu governo e alianças em busca de sobrevivência política após 2022.

“Ele não fala em Deus”

O lema de Jair Bolsonaro é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A frase, que teria suscitado acusações de blasfêmia em outros tempos, hoje serve como credencial básica para fazer política no país.

Uma amiga havia conquistado o voto de um companheiro de trabalho para Guilherme Boulos. No dia de votar, recebeu dele uma mensagem que justificava sua reconversão ao candidato de direita: “Orei muito, pedi iluminação ao Senhor. Não votei em Boulos porque ele não fala em Deus.”

Anedotas à parte, é fato que o evangelismo sobe vertiginosamente no país. Segundo o Inst. Datafolha (janeiro 2020), já congrega 31% da população e poderá se tornar majoritário em 2032, ultrapassando o catolicismo. O dado é relevante porque essas igrejas são organizadas em partidos de direita, sem pudor em mesclar votos e fé.
Nem todos os crentes votam no candidato do pastor, mas algumas pautas políticas são telhados de vidro prêt-à-porter. O PSOL, que vem sendo alçado a sucessor do PT na esquerda, é conhecido por um laicismo militante e boa parte de seus representantes são ligados a causas feministas ou LGBT. Dado o crescente conservadorismo religioso da população brasileira, é incerto se conseguirá ultrapassar seus nichos e vencer eleições majoritárias.

Mas e a gestão?

Um estado ainda não teve eleições municipais. Trata-se do Amapá, na região amazônica. Esse fato inaudito se deu, candidamente, por falta de luz.

Um incêndio inutilizou o transformador de uma subestação de transmissão de energia no dia 3 de 11. Cerca de 730 mil pessoas ficaram sem eletricidade pelos 22 dias que se seguiram, com todos os prejuízos e tragédias decorrentes.

O episódio expõe a marca do liberalismo desenfreado. A transmissão no estado havia sido concedida por 30 anos à empresa Isolux, com sede em Madri. Em recuperação judicial, o grupo vendeu o ativo a fundos que se dedicam à “gestão de investimentos em situações especiais” -vulgo fundos abutre-. Para situações especiais, medidas especiais, como não realizar a manutenção dos transformadores e sobrecarregar os que ainda funcionam. É claro que o socorro à população foi feito pelo Estado.  

O liberalismo agora terá que governar. Em terras do sul, ele pode tomar feições bastante selvagens e, nesses casos, é difícil convencer a população de que não há alternativa.

Alberto Fernández na Argentina e, recentemente, Luis Arce na Bolívia provam que outros retornos são possíveis.
 

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