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Crónica desde o Donbass: O mistério das tumbas comuns em Mariupol

As autoridades ucranianas anunciaram tumbas comuns com milhares de mortos nos arredores de Mariupol com a ajuda de imagens de satélite de duas empresas norte-americanas. Só que, afinal, nesse lugar apenas havia um cemitério e campas individuais.
Cemitério da cidade ucraniana de Mariupol, na região do Donbass, com centos de sepulturas. (Foto: Bruno Amaral de Carvalho)
photo_camera Cemitério da cidade ucraniana de Mariupol, na região do Donbass, com centos de sepulturas. (Foto: Bruno Amaral de Carvalho)

"Meu sol, olha para mim, a minha mão transformou-se num punho e se há pólvora dá-me fogo", canta Viktor Tsoi no auto-rádio. Ao volante, segue Sacha que se desdobra em perguntas curiosas sobre Portugal até confessar que tem um irmão em Lisboa. "Ele defende os ucranianos. Deixou-se levar pela propaganda da NATO", comenta. Na verdade, não é assim tão incomum. Apesar de esta região ser maioritariamente russófona e votar em partidos pró-russos, são vários os casos de famílias desavindas por causa da guerra que dura há cerca de oito anos.

Perto de Mariupol, a cerca de 15 quilómetros, está Mangush, uma localidade que abriu telejornais em todo o mundo. De acordo com as autoridades ucranianas, com a ajuda de empresas norte-americanas de geolocalização, poderia haver aqui tumbas comuns com até 9 mil corpos escondidos.

“Procuramos o cemitério de Mangush. As autoridades ucranianas dizem que há valas comuns nesse lugar”. O soldado separatista sorri e indica-nos o caminho. É um sinal de que, provavelmente, não há aquilo que procuramos. A denúncia da tumba comum em Mangush é muito grave e é por isso que ali estamos. A notícia correu o mundo e a informação foi confirmada pelo anterior autarca de Mariupol, Vadym Boichenko, que escapou da cidade há dois meses.

Dentro do cemitério desta localidade, contamos cerca de 230 campas individuais, muitas delas com nome e data de nascimento e morte dos defuntos. Nada que se pareça a uma tumba comum. Mangush tinha 8 mil habitantes até há bem pouco tempo. Com a guerra, a população aumentou para cerca de 30 mil com a chegada de refugiados de Mariupol.

Encontramos uma idosa que limpa a campa de um familiar. Ana aceita falar connosco sobre o que sabe sobre estas campas recentes que se encontram no ponto da geolocalização indicado pelas autoridades ucranianas dentro do recinto. “O camião trazia corpos de Mariupol. Duas escavadoras abriam buracos e uma outra enchia de terra. O camião ia e voltava. Dizem que os corpos foram primeiro levados para Mangush para a morgue. Só depois trazidos para cá e enterrados”, explica. Ana dá ainda mais um dado importante. Estes enterros acontecem todos os dias desde há cerca de um mês.

Mais à frente, Irina arranja a campa do pai. Hoje, faz seis meses que morreu este importante arquitecto de Mangush. Orgulhosa, a filha explica que foi um dos responsáveis na cidade pelo referendo para a independência da República Popular de Donetsk. Quando lhe perguntamos onde vive recusa-se a responder. “Tenho medo da vingança dos fascistas. Nós nunca sabemos como é que eles se podem vingar das pessoas”, afirma. Diz que “graças a Deus” a República Popular de Donetsk está “finalmente aqui” mas não adianta pormenores sobre as campas.

Já percebemos que neste cemitério não há qualquer tumba comum e decidimos, então, visitar a morgue de Mangush para entender de quem são estes corpos. Somos recebidos por vários soldados que dizem ser médicos forenses. “Nós examinamos cadáveres de civis e soldados que morreram em Mariupol. Então, emitimos um atestado médico de óbito”, explica um deles. Questionados sobre as notícias que dão contam de que milhares de pessoas foram mortas e enterradas pelo exército russo ou pela milícia de Donetsk, respondem que é “mentira” e revelam que são dois os cemitérios para onde vão estes corpos.

Mangush e Stary Krym, outro cemitério onde as autoridades ucranianas alegam haver uma tumba comum. Segundo estes soldados, cada sepultura é individual, com um caixão e uma placa com um número. Isto depois de um exame ao cadáver em conjunto com uma equipa do Ministério Público da República Popular de Donetsk. De seguida, uma empresa pública trata dos enterros, onde não se incluem os corpos de militares russos ou desta república. São sobretudo civis e soldados ucranianos e estão a ser enterrados desde meados de Março.

Os números de enterros coincidem com aqueles que contámos em Mangush e, no dia seguinte, no cemitério de Stary Krym. É, aliás, aqui que podemos conversar com um trabalhador que opera uma escavadora. Danya explica que enterra todos os dias cerca de meia centena de pessoas. Quando lhe perguntamos se há tumbas comuns no cemitério, responde negativa e descreve o processo. “Vê os caixões ali? Por cima, afixamos aquelas placas com números. Quando vêm pessoas à procura de familiares, fazem-no através dessa identificação”.

Se parece estranha a ideia de que a Rússia pudesse tentar fazer valas comuns em cemitérios para tentar esconder as vítimas dos combates em Mariupol, esse plano parece ainda mais inverosímil para quem caminha pelas ruas desta cidade. Não só há centenas de corpos enterrados pela própria população em jardins e canteiros como o trabalho dos bombeiros na recolha de cadáveres é visível. Testemunhámos isso mesmo. A batalha pelo controlo de Mariupol mostrou o horrível rosto da guerra, onde os civis são sempre as primeiras vítimas.

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