Uma língua de várias pátrias

Coincide este 5 de maio em que Nós Diario começa um curso sobre Língua que visa oferecer um melhor uso e mais qualidade com o Dia da Língua Portuguesa e da Cultura Lusófona. O dia foi criado em 2005 durante uma reunião dos ministros de cultura de sete países lusófonos celebrada em Luanda. Os ministros optaram por essa data por ser nela que se reuniram por vez primeira, em Lisboa, os ministros de Cultura da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Corria o ano de 1996. O texto que segue foi inicialmente concebido para a lembrança do 106 aniversário do nascimento de Carvalho Calero em Ferrol, na casa número 51 da Rua de Sam Francisco, hoje em ruína, como em ruína, outro tipo de ruína, ficam as comemorações do Dia das Letras a Carvalho dedicado.
Carvalho Calero
photo_camera Carvalho Calero ofereceu inúmeros depoimentos em diversos actos públicos. (Nós Diario)

Apreocupação de Carvalho pela língua foi constante, quer do ponto de vista da normalização de usos quer da estandardização gráfica. Dum ponto de vista muito diferente também a Língua era uma preocupação de Fernando Pessoa.

Possivelmente Carvalho e Pessoa não cruzaram nunca os seus caminhos vitais mas ambos coincidiram numa ideia: a língua é a pátria, ou a mátria, ou a frátria, comum; ou dito de uma outra maneira, a língua é o que define a nação, o que identifica uma comunidade.

Com bastante certeza Fernando Pessoa não leu nunca nada do escrito por Carvalho Calero a pesar de à altura de 1935, ano em que a 30 de novembro Pessoa faleceu, já Carvalho ter publicado quatro livros de poesia e uma peça de teatro de título O Fillo, sem esquecer o discurso pronunciado com motivo da abertura do curso 1930-1931 da Universidade de Santiago e de nos contar Como vía Aristóteles o Pae Feijoo e de ter sido um dos líderes estudantis com mais carisma dentro da FUE.

Com toda a segurança Carvalho leu todo o publicado por ou sobre Pessoa até o ano da sua morte, a de Carvalho, em 1990.

Pessoa escreveu muita e variada coisa, tanta que ainda hoje seguem a aparecer textos inéditos, mas, como Carvalho, preferiu sempre a poesia: E a criança tão humana que é divina / É esta minha quotidiana vida de poeta, / E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, / E que o meu mínimo olhar / Me enche de sensação, / E o mais pequeno som, seja do que for, / Parece falar comigo.

Carvalho, nas Conversas em Compostela com Fernán-Vello e  Pillado,  confessa: "Dunha forma ou doutra, aínda que eu son polígrafo, xa que teño traballado en narrativa, en teatro e en ensaio, creio que, efectivamente, o máis íntimo da miña personalidade está reflexado na poesía, até o extremo de que na mesma narrativa ou no mesmo teatro, considero que a parte mais persoal ou a parte mais orixinal, dentro da orixinalidade que cabe a un escritor do século XX depois de Xesuscristo, é aquela que contén unha raiz lírica".

A Baixa e Maçarelos

Com certeza Carvalho percorreu todas as ruas da Baixa em que Pessoa imaginou mais de um cento de heterónimos, todo um universo de criaturas que o acompanharam nas tertúlias do café A Brasileira e nas noites do Chiado e também quando ideou a anúncio da Coca-Cola.

Nada nos indica que Pessoa percorresse o Tránsito dos Gramáticos nem andasse pela Praça de Maçarelos como fazia Carvalho cada dia antes das nove desde que em 1965 se incorporou à Faculdade de Filologia, a um posto de trabalho dotado com 700 pesetas ao mês:

"O Decano escribiume oferecéndome o posto. Como a cadeira non está dotada, só se dispón de 700 pesetas mensuás pra me remunerar. Pero, ¿cómo ía atreverme a refusar? Mallaríades en min. Contestei aceitando… En fin, é unha aventura persoal impropria dos meus anos; pero quero ensaiala, inda que remate mal, pois sería paradóxico que a esquivara. Hai que vivir con autenticidade" escreveu em carta a Del Riego.

O espelho em que  a Galiza se reconhece 

"A minha pátria é a língua portuguesa" escreveu Pessoa e Carvalho, se calhar  neste caso menos poético, diz: " Em realidade, Galiza existe desde que existe o galego porque o galego é o espelho em que Galiza se reconhece" para continuar "A história do idioma galego é a história mesma de Galiza" e concluir que "Galiza nace à história quando o galego nace".

A identificação língua/pátria e língua/nação é comum a Carvalho e a Pessoa. A frase de Pessoa, do Livro do Desassossego, originou inúmeras citações ou adaptações. Entre elas, a modo de exemplo, José Saramago, que concluiu que a língua portuguesa é "uma língua de várias pátrias" ; ou Eduardo Lourenço, que acrescentou: "uma língua não o é de ninguém, mas nós não somos ninguém sem uma língua que fazemos nossa"; ou Jorge de Sena, que vai além: "a Pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci"; ou Maria Gabriela Llansol, para quem :"o meu país não é a minha língua, mas levá-la-ei para aquele que encontrar"; ou Eduardo Prado Coelho, que, categórico, afirma: "A nossa pátria só será a língua portuguesa se for mais do que a língua"; ou o moçambicano Mia Couto, que diz: "a minha pátria é a minha língua portuguesa"; ou o brasileiro Ledo Ivo: "Minha pátria não é a língua portuguesa. Nenhuma língua é a pátria. Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci"; ou o brasileiro Caetano Veloso, que não tem pátria e quer frátria: "A  língua é a minha pátria / E eu não tenho pátria, tenho mátria / E quero frátria". A preocupação de Carvalho pela língua, tanto pela sua codificação como pelo seu uso arranca da sua etapa de estudante em Compostela. Já em 1933 censura o amigo Fernández del Riego por ter utilizado em público o espanhol antecipando a teoria da necessidade de criarmos espelhos públicos de uso: "Paréceme moi mal que falaras en castelán no mitin escolar. Hai que partir da hipótese de que todos os estudantes de Santiago coñecen o galego. A tesis debe ser: en Galicia, como non se actúe como funcionario oficial nunca debemos falar en castelán en púbrico".

Chegados a esta altura do relato podem pergunta-se por que juntar num mesmo relato Carvalho e Pessoa. Pois permitam-me trazer como resposta aquele verso de Rosalia: O amor da patria me afoga. Porque se em Pessoa é evidente a identificação pátria e língua em Carvalho é patente a identificação língua e nação, que vem sendo o mesmo. Por isso Carvalho diz que "o galego é Galiza" e se o galego é (ou forma parte de, como preferirem) o mesmo sistema linguístico também chamado português e a partir de aqui resulta bem conhecida a posição de Carvalho, sermos linguisticamente falando, compatriotas de Pessoa, de Mia Couto ou de Caetano Veloso.

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