Sónia Sultuane, suturar os rasgões que traz a vida

Sónia Sultuane, poeta moçambicana, lança novo livro. Roda das encarnações. Falamos com ela, transcrevemos o que do livro diz Mia Couto e lemos seus textos.

Sónia Sultuane
photo_camera Sónia Sultuane

Roda das encarnações é a nova proposta poética de Sónia Sultuane, proposta de questionamentos profundos em que a palavra é levada à categoria de agulha com que suturar os rasgões que traz a vida.

- Como surge o título?
- O título não surge por acaso. É motivado pelo facto de considerar que estou a ter uma segunda chance da vida.

- Essa é a principal reflexão

- A principal reflexão da obra gira em torno do tema relativo à espiritualização, esse lado humano que não se toca, sente-se.

- Portanto, esta nova proposta em livro não se esgota na beleza da poesia?

- Não, é mais de alma e de questionamentos profundos. Quero que os leitores encontrem a vontade de viver, no livro, a fé, e que respeitem a oportunidade de estarem vivos, encontrando na palavra a força necessária para a luta.

“Roda das encarnações” sai sob a chancela da Fundação Fernando Leite Couto. É prefaciado por Francisco Noa. No lançamento também falou Mia Couto 

O que diz Mia Couto

"Um livro não se apresenta, tal como não se apresenta uma pessoa. O que vou aqui fazer é apenas partilhar convosco o modo como me aconteceu este “Roda das encarnações”. O que mais me tocou neste livro foi um sentimento religioso que perpassa por todos os poemas e que se anuncia logo no título. O título fala de encarnações e o título podia ser uma mentira poética mas não é.

Este livro trata desse círculo infinito de que faz parte a migração de corpos e almas e de mundos.

De um modo muito feliz o título reúne dois conceitos: o da roda e da encarnação. É uma falsa dualidade porque se trata de uma única entidade. Quando se fala em “roda” está-se a convocar um tempo circular que não deixa que os vivos se afastem dos mortos. Evoca-se um tempo que reunifica as pontas do passado e do futuro. Quando se fala em “roda” está a sugerir um jogo, uma dança, uma relação lúdica com o tempo que só acontece no tempo da infância. 

E a fotografia da capa é elucidativa: a poeta descalça-se à porta do poema, espaço místico e sagrado, para depois voltar a usar os sapatos quando eles tomaram vida e se encheram de alma. 

O que se anuncia logo de início, logo no primeiro poema dedicado ao seu filho. é uma espécie de rosário de encarnações. É curioso pensar como o termo “encarnação” é partilhado por um conjunto de discursos religiosos como o cristianismo, budismo, hinduísmo e espiritismo. No discurso cristão a palavra foi sugerida no Novo Testamento para designar a vinda de Cristo à terra. Cristo “encarnou” porque reconciliou em si mesmo a carne e o espirito divino. A encarnação opera um milagre fundamental: sem ter deixado de ser Deus, Deus se fez homem. Sendo carne e sendo mortal, Cristo fez-se alma immortal dos mortos e dos vivos, dos antepassados e dos vindouros. 

Este livro é habitado por um sentimento religioso no sentido primordial da palavra “religião” que é aquilo que nos leva a nos religarmos a algo que é universal, que é perene e que é sagrado.

Um sentimento que não é exatamente o de uma qualquer religião concreta mas de uma religiosidade que nos faz reconectar com o universo. E que nos faz descobrir o mundo com os olhos da infância. 

Há uma ferida original que é a existência individualizada, dispersa e fragmentada

Há um verso em que Sónia diz: a minha alma está cheia  de um pedaço de todos.
Sucedeu algures no nosso tempo vivido, um rasgão que impede que cada um de nós não seja todos os outros. Há um nó que nos aprisiona numa única pessoa. Há uma cicatriz que nos condena a viver a nossa vida por pequenos pedaços e insuficientes passos. 

Esse rasgão precisa ser suturado. Quem faz essa costura é a poesia. É com essa agulha e com esse pano que Sónia vai alinhavando versos com a intenção de recuperar o sentido sagrado da palavra. 


Há um poema em que ela escreve: 
caminho com as palavras impressas em meus pés
Isto é poesia pura. É como se um livro estivesse escrito na superfície da terra.  E como se ao inverso foi a terra que lesse o poeta. Foi a poesia que escrevesse o poeta. 

É no discurso poético que Sónia Sultuane constrói um idioma universal e que nos reconduz a uma experiência de hamornia absoluta. Neste livro a palavra é revelada como um meio não apenas de chegar ao outro mas de ser um outro. Essa palavra não é já uma coisa mas uma divindade. A essa divindade Sónia se dirige, numa espécie de confissão de uma menina pequena que procura adormecer:  

….” E é que como se me lesses, 
um livro de contos pagão e panteísta, 
fazendo calar o tropel sonoro da minha alma inquieta
,”.

O assunto destes poemas é o mesmo de toda a poesia: a procura de um regresso a casa. Essa casa pode ser uma geografia (aqui se sugere com frequência a Índia). Mas essa casa nunca chega a ser um lugar. Essa casa pode ser uma vida anterior, pode ser a evocação de um espaço de afecto da família e da infância (os poemas que são dedicados são dedicados quase sempre a familiares, numa roda sultuanica, com exceção honrosa do meu falecido pai, o patrono desta casa). Essa casa não é um tempo ou um lugar: é uma viagem, uma travessia, é o amor que apaga fronteiras entre corpos e vidas. 

Neste livro partilhamos uma casa feita com palavras. Palavras de alguém que não apenas escreve. Alguém que é a própria poesia” (Mia Couto)

O que diz o livro (fragmentos)

Roda das Encarnações

Sou os olhos do Universo,  
a boca molhada dos oceanos, 
as mãos da terra, 
sou os dedos das florestas
o amor que brota do nada, 
sou a liberdade das palavras quando gritam e rasgam o mundo, 
sou o que sinto sem pudor, 
sou a liberdade de mãos abertas, agarrando a vida por inteiro 
estou em milhares de desejos, em milhares de sentimentos 
sou o cosmos 
vivendo na harmonia na roda das encarnações.

Vocabulário
Por todos os lugares agrestes e sagrados que piso, 
pelas savanas, florestas e montanhas que me povoam, 
caminho com as palavras impressas em meus pés
e viajo no mundo a qualquer hora do dia ou da noite 
falo em qualquer língua
rezo as palavras das mais diversas religiões 
sem amarras ou falsas convicções
no meu coração vive todo o vocabulário 
que só eu entendo e comigo caminha
um vocabulário todo ele sentimento, esperança e perdão 
para que o amor não morra
esquecido em qualquer canto do universo.

Entrada para o céu
Quando faltarem asas 
sopra nas tuas mãos as palavras amarradas. 
Voarão em liberdade poemas encantados.

Em forma de gente
Em forma de gente que sente 
perguntaram-me se ainda escrevo poesia 
se ainda sinto a brisa das palavras 
os longos vazios decadentes 
se ainda sinto as noites gélidas 
e as tempestades nos lençóis brancos 
onde se deita a solidão e a escrupulosa consciência 
perguntaram-me se ainda me rio ao sabor do vento 
das tardes quentes e húmidas
se ainda olho feliz o pôr-do-sol
e esboço prosas cheias de palavras e finais contentes. 
Sim, 
ainda escrevo poesia 
e sou poesia que sente
e que tem nos lábios agarradas todas 
as sílabas e as vírgulas numa fé permanente.

Vasculhando memórias
Vou abrir a gaveta da distância, 
para encontrar a saudade, 
vou vasculhar nas memórias, 
as lembranças do que não vivi!!!

Melodia
Quero o silêncio 
para descansar nele 
todos os ruídos do mundo. 
Quero o silêncio 
para ouvir 
a música mais bela da vida 
a melodia do meu coração!!!

Naufrágio
Quero soltar a âncora e velejar nesse mapa desconhecido, 
e se o mar ficar bravo, 
assobiarei aos céus para negociar a rota directa à lua, 
e se os ventos forem fortes,
aguentarei firme nas coordenadas dessa viagem da vida.


 

Comentarios