Torre de Trezenzónio

São Pedro de Rates

Aproveito uma visita turístico-cultural que fez este verão á “romaniquíssima” igreja de São Pedro de Rates (concelho e Póvoa de Varzim, Minho, Portugal) para ilustrar mais um exemplo dos modos de tergiversar a história.

Antes de começar a análise da tergiversação, da que falarei polo miúdo, quero apontar certos dados sinaláveis sobre esta igreja e do seu santo titular.

QUEM É SÃO PEDRO, O DE RATES? 

Contam as lendas que São Jacobe, São Tiago ou Sant-Iago (Santiago que lhe dizemos hoje) passou por estes nossos lares (refiro-me á provincia romana de Gallaecia, que ainda não era tal) os últimos anos da sua vida, antes de voltar á Terra Santa invocado por uma comunicação extrasensorial da virgem Maria, mãe de Jesus, que queria morrer em presença do seu apóstolo favorito. Bom, de certo Maria não morreu, ascendeu em corpo e alma ao ceu, de aí o dia da Ascensão, que brilha mais do que o sol.

São Pedro de Rates sec. XVIIIO caso é que o nosso santo padrão (Sanctus Iacobus) percorreu as terras do noroeste da P. Ibérica para traer a palavra de Jesus. Chegou-se a Braga onde se conservava o sepulcro antigo dum profeta judeu, um tal Malachias também chamado Samuel, mandado por Nabucodonossor com uma colónia de judeus (?) entre os que destacava um: Pedro, depois alcumado “de Rates”. O apóstolo converteu os judeus ao cristianismo e nomeou bispo da sé de Braga a Pedro, no ano 45 da nossa era, e partiu para Galileia, onde perderia a cabeça, e de onde voltaria, morto já, por cortesia da barca de pedra. 

Deste Pedro pouco sabemos salvo que sofreu martírio a causa da sua capacidade para sandar uma filha dum poderoso pagão (segundo fontes o governador romano de Bracara Augusta). A rapariga, agradecida e reconhecendo a intervenção divina na curação, converteu-se ao cristianismo junto com a mãe. O pai, um pagão poderoso, convencido e intolerante, decidiu tomar-se vingança na moça e no santo. Pedro, avisado das avessas intenções do poderoso pai, fugiu ao lugar que hoje receve o seu nome, onde sei que já havia cristãos e capela.

Ali, nessa capelinha foi decapitado e o edifício derruído sobre el. E ningum daqueles cristãos se interessou por reconstruir o edificio nem por honrar a memória do bispo! 

Com estas datas e seguindo a obra Monarchia Lusytana (1632) composta por Frey Bernardo de Brito este São Pedro foi o primeiro mártir da Europa e anterior em quase 20 anos do outro Pedro, o de Roma... quase nada.

Uma reflexão: Se Pedro de Rates é um “santo” e bispo anterior ao santo e bispo Pedro de Roma... como é que é Roma, e não Braga, a que tem a primazia na Igreja Católica?

Séculos despois um eremita, de nome Félix (i.é Feliz), desde o alto do monte onde morava, na Serra de Rates, via uma luz na noite ao longo de vários dias (do número há diversidade).  Dirigiu-se ali, apartou os restos do edifício e achou a fonte da luz: o corpo de São Pedro. As reliquias do corpo do santo estiveram na igreja que sobre elas se construiu (quando?) até que forom trasladadas á Sé de Braga em 1552.

Uma reflexão: Se Pedro de Rates é um “santo” e bispo anterior ao santo e bispo Pedro de Roma... como é que é Roma, e não Braga, a que tem a primazia na Igreja Católica? Eis um assunto no que levo trabalhando algum tempo e podo dizer que Roma (a Curia romana e os seus papas sucessivos) temia que na Gallaecia ou na Galécia se organizasse uma sé especial, um novo patriarcado, um cisma ou, peor ainda, a cabeça duma outra Igreja. Eis, ao meu entender, o principal motivo de interesse por esta igreja (mosteiro) de Rates e a sua transformação ao longo dos séculos, nomeadamente no passo a Cluny... e no século XX?
Imos com o edificio e a sua história.
 
A IGREJA DE SÃO PEDRO DE RATES

A igreja, tal como hoje está, é resultante de múltiplas transformações. Seguirei para tratá-las, seleccionando a informação, a página web do património da República Portuguesa que se pode consultar neste endereço.

estela romana achada em s. PdroOs vestígios materiais mais antigos ... recuam à época romana, ... mas os elementos que podemos relacionar com a igreja datam já do período asturiano-leonês ... entre os finais do século IX e os inícios do seguinte... .Nas recentes escavações, o conhecimento acerca do templo pré-românico alargou-se a outros elementos, casos de um aparente ante-corpo ocidental (GOMES e CARNEIRO, 2003, p.242), provável narthex do templo pré-românico. Nesta parte do edifício, foi encontrada uma estela romana, posteriormente cristianizada pelos séculos VI-VII (IDEM, p.255) e, ainda depois, reaproveitada na fase pré-românica. 

O edifício de tradição asturiana foi totalmente substituído ... Nos finais do século XI, o conde D. Henrique promoveu a renovação do templo,... de que restam também importantes vestígios, apesar de também profundamente alterado nos séculos XII e XIII. "Em traços gerais, seria uma igreja (a românica) com planta de três naves, cinco tramos e transepto. A cabeceira aproximava-se muito da actual. O mesmo se pode dizer da volumetria do edifício" (REAL, 1982, p.14).

Convém indicar que D. Henrique, conde de Porto-Cale entre 1093 e 1112, era sobrinho-neto do abade de Cluny, Hugo (ab.1049-1109) e, sem lugar a dúvidas, conduzia a política religiosa do grande abade nas terras que lhe concedera o rei Afonso VI. Nesta altura Cluny era o centro ideológico e organizativo do poder papal para conseguir a supremazia religiosa e política sobre a Europa ocidental. Henrique cede o mosteiro de São Pedro de Rates á abadia cluniacense por intermédio de Sta Maria da Caridade na Loira (um dos seus priorados). É nessa altura que a igreja deve ser refeita segundo os modos religiosos de Cluny e o novo rito romano: o estilo Românico. E esta é a primeira acção tendente a apagar o passado e deixá-lo fora da história.

Sigamos com a descrição:

A construção românica propriamente dita (?) iniciou-se no segundo quartel do século XII (?). Ela desenvolveu-se ao longo de um século, com avanços e recuos próprios de um estaleiro de longa duração, cujos trabalhos entraram pelos conturbados tempos de finais do século XII. .... No período de crise do reinado de D. Sancho I ...o programa construtivo e decorativo da fachada principal foi reduzido, reaproveitando-se aduelas concebidas para o portal nas arcadas das naves.

 

vista geral da igreja (1)

 ... O programa iconográfico do portal principal, apesar de drasticamente reduzido, é um dos mais completos do nosso românico (português). No tímpano, Cristo envolvido por mandorla, é ladeado por dois profetas que espezinham duas outras figuras, que Ferreira de Almeida entende representarem "sem dúvida, Judas e o herege Ario" (ALMEIDA, 2001, p.157).

porta principal e tímpano

Desconheço o trabalho de F. de Almeida mas identificar duas figuras “espezinhadas” num tímpano duma igreja do sécuo XII (ainda que a factura do tímpano é bastante “primitiva” na realização) como Judas e o herege Ario, sem haver nenhuma cartela que o indique, parez aventurado e ademais requeriria de profundos argumentos porque o arianismo (heresia de  Ario erradicada no “tempo dos godos”) estava fora de tempo (ou é que se sabe que ainda nesse tempo era seguida secretamente?).

No portal lateral Sul, o tímpano é envolvido por um arco cairelado e ostenta um Agnus Dei acompanhado pelos símbolos dos Evangelistas.

porta sulMuitas transformações aconteceram ao longo da História do mosteiro, que haveriam de culminar com o restauro efectuado pela DGEMN, o qual logrou reconstituir a cabeceira original, tripartida, escalonada e de planta semicircular. 

Esta é sem dúvida uma das “tergiversações” do passado mais criticáveis. Entre os anos 30 e 40 do século passado a Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais da Rep. Portuguesa (por siglas DGEMN) acometeu uma “reforma” do edifício da igreja na busca da pureza e originalidade do românico primitivo... nada menos!

Duas são as transformações que dão nos olhos com apenas ver duas fotografias, a actual e a prévia à reforma. Uma torre sineira e uma ábsida foram eliminadas por resultarem estruturas que não condiziam ao estilo românico cluniacense que, se supom, tinha a igreja. Esta é a maneira de recriar o passado, de re-construí-lo (literalmente) segundo a ideia de quem tem a autoridade (política ou estética) num dado momento. Isto deveria ter sido assim (ainda que não haja provas) e a esse estado o “restituímos”. Eis as fotos:

fotos antigas das ábsides antes e depois da  intervenção

Na foto da esquerda ve-se a ábsida quadrangular, de etapa posterior à românica, em péssimo estado de conservação. Na foto da direita, feita num ângulo diferente da anterior, a parte “espúria” do edifício já foi derrubada e fica à vista o arco ojival que dá ao transepto. A seguir nas obras de “restauro” construiria-se uma ábsida “convenientemente românica”, como pode ver-se na foto actual de conjunto.

Se não fosse pola documentação gráfica, um observador  despistado poderia pensar que é mais original do que o resto da construção, ainda que o estado da pedra delata a sua “juventude”.

Da torre pouco mais se pode engadir, apenas um comentário do projecto, pois a consideravam um atentado ressultante da insânia dos reformadores setecentistas (diz o livrinho de “Turismo de Portugal” dedicado à igreja). Dixo-lhe a pota ao caço!
 
vista geral da igreja ANTES da intervenção

De compararmos esta fotografia com a vista geral actual resulta difícil identificar em ambas as imagens a “mesma” igreja.

Mas os restauros não ficaram por aí. Cito o livrinho turístico que por sua vez cita o relatório do DGEMN: ...Conclusão da abóbada do braço sul do transepto e reposição parcial das cornijas das demais abóbadas... Apeamento e reconstrução total do absidiolo da Epistola, cujo estado de ruína era alarmante... picagem total de rebocos que cobriam todo o interior da igreja (com perda de pinturas parietais do século XVI)...Reposição na fachada principal da rosácea...

Para além destas transformações citadas polo documento oficial houve outras que, por considerá-las menores seguramente, não são mencionadas mas sim as recolhe o livrinho turístico. São a reutilização de cançorros dos absidiolos para ennobrecer (a palavra é minha) a absida “re-construída”, eliminação de azulejos em diversas paredes, remoção duma figura situada no alto do contraforte da fachada e hoje desaparecida (tal vez repressentação da Preguiça) e outras duas dum rei e um bispo, menores em tamanho...

Não falo (nem documento graficamente) no interior da igreja. É impressionante por muitos motivos e altamente recomendável visitá-la. Tal vez alguns elementos do interior, de feição “primitiva”, sejam o pouco que fica da igreja anterior, ainda que os arqueólogos e historiadores da arte os explicam como “câmbios de planos” e avanços e recuos...

Do templo pré-românico (proto-românico?), cujos alicerces foram achados no espaço anterior à porta da igreja actual, nada se diz a pesar de ser uma obra de tres naves, similar em tamanho e estrutura da igreja actual. Não gosto de pensar mal mas... semelha que sobre essa igreja primitiva não há discurso políticamente correcto. Mágoa! Do que não se fala não existe. Seria essa a intenção de D. Henrique ao doá-la a Cluny?  

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