Prémio Camões

Raduan Nassar, o escritor que não cede a pressões do mercado

O Prémio Camões é o maior galardão literário dedicado à Literatura em Língua Portuguesa. No valor de 100 mil euros, foi instituído por Portugal e pelo Brasil em 1989. Raduan Nassar é ganhador nesta edição.

[Imaxe: Paulo Pinto / Fotos Públicas] Raduan Nassar
photo_camera [Imaxe: Paulo Pinto / Fotos Públicas] Raduan Nassar

O Camões  é o prémio de maior prestígio da língua portuguesa e visa “consagrar anualmente um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”. O escritor Miguel Torga foi o primeiro autor a ser distinguido, Raduan Nassar o mais recente.

Raduan Nassar nasceu em Pindorama, São Paulo, em 1935. O escritor é descendente de libaneses, estudou Direito e Letras na Universidade de São Paulo, e concluiu a sua formação académica em Filosofia. Raduan Nassar estreou-se na literatura em 1975, com o romance “Lavoura Arcaica”. Em 1978, publicou a novela “Um Copo de Cólera” e em 1997 a coletânea de contos “Menina a Caminho”. É autor de uma obra parca, considerada de intervenção e  há muito que se encontra afastado da literatura,  tendo há duas décadas deixado de escrever e decidido regressar à terra natal e dedicar-se às atividades agrícolas e a criar galinhas.

Nassar é um dos mais discretos escritores do Brasil, e com apenas três livros publicados que juntos pouco ultrapassam as 200 páginas, é considerado pela crítica como um grande escritor,  graças à extraordinária qualidade da sua linguagem e da força poética da sua prosa.  A curta extensão da obra de Nassar não foi óbice para o júri ao considerar "que o escritor não cede a pressões do mercado sobre a produtividade ou presença pública mais constante. Cria a obra literária em total independência aos valores que lhe são antagónicos".

Apoio a Dilma

Afastado há mais de vinte anos da vida pública o seu afastamento  foi interrompido há algumas semanas quando decidiu reaparecer em público e fazer uma proclamação contra o "golpe de estado" contra a Presidenta Dilma Rousseff. Nassar, contesta o processo de impeachment e o caminho da política brasileira nos últimos meses, tendo-se sentido na obrigação de tornar conhecida a sua opinião, tal como podemos ler no Diário de Notícias em boca do presidente do júri, o poeta brasileiro Sérgio Alcides Amaral: "O Raduan Nassar é muito recluso e avesso aos holofotes. Não é por vaidade, antes uma forma de ser introspetiva. As circunstâncias políticas lamentáveis que o Brasil vive neste momento retiraram esse escritor da reclusão, e fez um pronunciamento contrário à queda da legalidade quando se punha em marcha o golpe de estado que aconteceu efetivamente com o impeachment. Essa atitude tão extraordinária mostra Essa atitude tão extraordinária mostra um senso de responsabilidade que contraria o seu modo de ser. Ao ser compelido a pronunciar-se, o resultado foi de grande impacto social."

Para o presidente do júri, a saída da sombra de Nassar teve um resultado muito forte: "O efeito dessa sua declaração foi muito relevante, o que confirma a importância da sua obra, que não é engajada politicamente. O facto de a sua voz ter tido essa repercussão mostra que a extensão da obra não corresponde ao impacto que ela tem."

Quanto à data de entrega do Prémio Camões, prémio que o escritor "acolheu-o com satisfação e orgulho" nada está ainda decidido.

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Raduan Nassar, fragmento de Um copo de cólera


A CHEGADA

E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?” e como ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da geladeira, fui até a pia e passei uma água nele, depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando na mão, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando acabei de comer o tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto.

NA CAMA

Por uns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo, e não no que ela ia fazendo, por isso eu me sentei na beira da cama e fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços nas mãos e sentindo-os gostosamente úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele instante, e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos pra minha andança no quarto, deixando que a barra da calça tocasse ligeiramente o chão ao mesmo tempo que cobria parcialmente meus pés com algum mistério, sabendo que eles, descalços e muito brancos, incorporavam poderosamente minha nudez antecipada, e logo eu ouvia suas inspirações fundas ali junto da cadeira, onde ela quem sabe já se abandonava ao desespero, atrapalhando-se ao tirar a roupa, embaraçando inclusive os dedos na alça que corria pelo braço, e eu, sempre fingindo, sabia que tudo aquilo era verdadeiro, conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivo por uns pés, e muito especialmente pelos meus, firmes no porte e bem-feitos de escultura, um tanto nodosos nos dedos, além de marcados nervosamente no peito por veias e tendões, sem que perdessem contudo o jeito tímido de raiz tenra, e eu ia e vinha com meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por instantes até o banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama fiquei aguardando por ela já teso e pronto, fruindo em silêncio o algodão do lençol que me cobria, e logo eu fechava os olhos pensando nas artimanhas que empregaria (das tantas que eu sabia), e com isso fui repassando sozinho na cabeça as coisas todas que fazíamos, de como ela vibrava com os trejeitos iniciais da minha boca e o brilho que eu forjava nos meus olhos, onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe e sórdido, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre de gritar “é este canalha que eu amo”, e repassei na cabeça esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pelos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração, e de olhos fechados, largando a imaginação nas curvas desses rodeios, me vi também às voltas com certas práticas, fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da sela do seu ventre, atendia precoce a um dos seus (dos meus) caprichos mais insólitos, atirando em jatos súbitos e violentos o visgo leitoso que lhe aderia à pele do rosto e à pele dos seios, ou fosse aquela outra, menos impulsiva e de lenta maturação, o fruto se desenvolvendo num crescendo mudo e paciente de rijas contrações, e em que eu dentro dela, sem nos mexermos, chegávamos com gritos exasperados aos estertores da mais alta exaltação, e pensei ainda no salto perigoso do reverso, quando ela de bruços me oferecia generosamente um outro pasto, e em que meus braços e minhas mãos, simétricos e quase mecânicos, lhe agarravam por baixo os ombros, comprimindo e ajustando, área por área, a massa untada dos nossos corpos, e ia pensando sempre nas minhas mãos de dorso largo, que eram muito usadas em toda essa geometria passional, tão bem elaborada por mim e que a levava invariavelmente a dizer em franca perdição “magnífico, magnífico, você é especial”, e eu daí entrei pensando nos momentos de renovação, nos cigarros que fumávamos seguindo a cada bolha envenenada de silêncio, quando não fosse ao correr das conversas com café da térmica (escapávamos da cama nus e íamos profanar a mesa da cozinha), e em que ela tentava me descrever sua confusa experiência do gozo, falando sempre da minha segurança e ousadia na condução do ritual, mal escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus às minhas obscenidades, me falando sobretudo do quanto eu lhe ensinei, especialmente da consciência no ato através dos nossos olhos que muitas vezes seguiam, pedra por pedra, os trechos todos de uma estrada convulsionada, e era então que eu falava da inteligência dela, que sempre exaltei como a sua melhor qualidade na cama, uma inteligência ágil e atuante (ainda que só debaixo dos meus estímulos), excepcionalmente aberta a todas as incursões, e eu de enfiada acabava falando também de mim, fascinando-a com as contradições intencionais (algumas nem tanto) do meu caráter, ensinando entre outras balelas que eu canalha era puro e casto, e eu ali, de olhos sempre fechados, ainda pensava em muitas outras coisas enquanto ela não vinha, já que a imaginação é muito rápida ou o tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simultaneamente coisas díspares e insuspeitadas, quando pressenti seus passos de volta no corredor, e foi então só o tempo de eu abrir os olhos pra inspecionar a postura correta dos meus pés despontando fora do lençol, dando conta como sempre de que os cabelos castanhos, que brotavam no peito e nos dedos mais longos, lhes davam graça e gravidade ao mesmo tempo, mas tratei logo de fechar de novo os olhos, sentindo que ela ia entrar no quarto, e já adivinhando seu vulto ardente ali por perto, e sabendo como começariam as coisas, quero dizer: que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus pés, que ela um dia comparou com dois lírios brancos.


(Fragmento da Edição comemorativa 35 anos [1978-2013] da Companhia das Letras)

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