Adriana Calcanhotto / Cantora brasileira

"No Brasil somos consumidores da poesia que se dá a través da música"

Adriana Calcanhotto (Porto Alegre, 1965) é um dos últimos elos na longa e viçosa cadeia da Música Popular Brasileira (MPB). Vinte discos, três deles dedicados à música infantil baixo o pseudónimo de Adriana Partimpim, pontuam uma trajetória em que se misturam samba, bossa nova, pop ou baladas.

Adriana Calcanhotto
photo_camera A cantora brasileira Adriana Calcanhotto.

O 27 de abril amostrará em Santiago de Compostela o seu novo espetáculo, A Mulher do Pau-Brasil, imaginado durante o semestre de residência artística na Universidade de Coimbra. O dia anterior falará sobre os trovadores na universidade compostelana. Atende Sermos Galiza via telefónica desde Portugal.

-O Manifesto da Poesia Pau-Brasil propôs, nos anos vinte, olhar as origens e a cultura própria com olhos modernos, quase vangardistas. Por que o título do seu espetáculo?

-Porque ese movimento, a Poesia Pau-Brasil, e o movimento modernista brasileiro estavam propondo que a poesia brasileira parasse de imitar a poesia portuguesa. Em nome de juntar a poesia coa nossa fala, com o jeito em que nós falámos, com o jeito brasileiro. Eu descobri esse movimento aos 15 anos. Era muito, muito interessante. Abriu-me muitas janelas. Por exemplo, a poesia concreta e a obra de Augusto de Campos. E a partir da sua obra muitos poetas do mundo que ele traduziu.

-Ainda considera úteis essas ideias?

-As ideias da antropofagia, da poesia Pau-Brasil, acontecem no Brasil em ciclos. São deglutidas e repensadas o tempo todo. O [Ze Celso] Martínez Corrêa do teatro montou varias vezes O Rei da Vela, um romance de Oswald de Andrade [autor do citado Manifesto da Poesia Pau-Brasil]. Agora volta a pô-la em cena no Rio de Janeiro. Vivemos em torno dessas ideias, que vão aumentando, que se vão modificando. São ideias que até seguem na nossa identidade. Porque o que Oswald de Andrade está propondo, junto ao movimento dele, é o que nós temos no nosso DNA por causa dos índios que viviam no Brasil antes de os portugueses chegarem lá.

-Por que?

-Eles usavam um ritual antropofágico que, por mais bárbaro que poda parecer aos nossos olhos mais desenvolvidos, é um ritual espiritual de obtencão da força do outro, do inimigo. A ideia é mais assimilar as forças do outro do que o destruir. Então nós recebemos o que vêm de fora, deglutimos, e devolvemo-lo ao mundo da nossa maneira. Isso é uma ideia central, básica, que ele propõe com muita ironia, citando a própria poesia portuguesa, muito enfeitada, que não combina com a nossa identidade. E na época que ele propõe isso, nos anos vinte do século XX, havia poetas escrevendo da forma portuguesa de dois séculos antes. Com isso quer romper. Falarmos, escrevermos, como nós somos, do nosso jeito. Então isso é unha provocação que dura até hoje na nossa identidade artística.

AdrianaCalcanhotto 2-Em Mulher do Pau-Brasil interpreta, além das suas próprias canções, outras do Chico Buarque, do Caetano Veloso, do Vinicius de Moraes. É um reconhecimento da história da Música Popular Brasileira (MPB)?

-Si. No Brasil somos 200 milhões. Se voçê escreve um livro de poesia que vende 3.000 cópias, é já um fenómeno. Não somos leitores de poesia. Nós somos consumidores da poesia que se dá através da música. Nós não temos um grande poeta cada cem anos, nós temos a geração do Caetano e do Chico, tocando a viola. E antes a geração do Vinicius como músico. Nós consumimos poesia muito mais através da música do que dos livros. O que faz pensar sobre o que acontecia na Grécia. Era altíssima poesia e nunca mais se escreveu daquela maneira. E era transmitida através da música. Esse mesmo fenómeno dá-se com os trovadores na Provença e na Galiza.

-E no Brasil, ao seu ver, acontece na atualidade?

-Si. No Brasil, esse fenómeno continua acontecendo. Uma canção nova como Caravanas, do último disco do Chico Buarque, conta a história profunda de Brasil em 2.48 segundos. É raríssimo, estamos muito mal acostumados. A gente acha que isso acontece em qualquer cancioneiro, mas não é verdade. É um fenómeno que se vêm dando no Brasil, dentro do samba e fora do samba, nas canções de autores mais cultos e naqueles que são analfabetos. E isso é o que nós consumimos. Outros cancioneiros não o têm. Penso que até o cancioneiro americano não chega a essa altura. Embora penso que não foi Bob Dylan quem ganhou o Nobel de literatura, foi o Nobel quem ganhou Bob Dylan. Isto ajuda a refrescar a memória de que não há uma hierarquia entre o poema escrito ou lançado em livro e aquele lançado como canção. Porque assim era antes. A poesia existe antes de ser escrita. E era transmitida através da canção.

Não foi Bob Dylan quem ganhou o Nobel de literatura, foi o Nobel quem ganhou Bob Dylan

-Quando amostra A Mulher do Pau-Brasil fora do seu país, dá a conhecer a história da música brasileira. Está preocupada com a dimensão pedagógica dos concertos?

-É engraçado que faça essa pergunta. Porque este concerto, mais do que todos os outros que eu já tenho feito, não sei se vale tanto para sítios onde não se fale a língua portuguesa. Mas ainda não tenho uma resposta, porque esse concerto é resultado da minha residência artística um semestre do ano passado na universidade de Coimbra. Vai pensado para esse mundo da língua portuguesa. Não sei como seria isso noutra língua. Porque na verdade só dei concertos aqui, concertos na Galiza e no segundo semestre darei no Brasil.

-A sua obra contribuiu para a renovação da Música Popular Brasileira. Por que esta mantém uma enorme capacidade de se refazer uma vez e outra?

-Muitas das operações que realizo não são coisas que já não se tenham feito. De experimentar o que certamente quis Oswald de Andrade. Nós não temos o peso histórico. Por exemplo, uma pessoa que quer escrever versos em Inglaterra, tem um peso inerente que não pode ignorar. Mas nós não encarnamos a nossa tradição coma eles. Eu entendo o contrário. E acho que isso também é uma característica da nossa canção.

-De que vai tratar a conferência que oferecerá na universidade?

-A universidade pediu-me uma conferência sobre os trovadores. E vou falar mais ou menos do que eu falo nas aulas que dou sobre trovadores. Em geral, eu desvio-me, nunca consigo dar uma aula inteira sobre tudo o tema. Porque também existem os trovadores contemporâneos. Eu vou falar sobre os trovadores medievais e especialmente dos galegos.

-E vê relação entre estes e a canção brasileira contemporânea?

-Essa ideia da transmissão da poesia através da música é uma aliagem direta. Eu acho que o fato de dom Afonso [refere-se a Afonso X O Sábio] escrever numa língua que não era dele deu um status à língua portuguesa que ela não tinha. E isso deu muita força ao desenvolvimento da língua, que depois faz ganhar mais espaço na época do Renascimento. Incorporam-se à língua muitos termos. Então é o desenvolvimento e evolução da língua portuguesa. Quando lá chega o Renascimento e Camões modela a língua daquela maneira, mais ou menos com o italiano como modelo. A língua é realmente dos maiores legados, senão o maior, de Portugal.

A transmissão da poesia através da música é uma aliagem direta entre os trovadores galegos e canção contemporânea no Brasil

-Prepara disco novo?

-Excelente pergunta. Eu concebi este trabalho como concerto, os arranjos, mesmo a canção A Mulher de Pau-Brasil... Tudo isso é arranjado para a linguagem de palco. Mais agora que já estamos no palco, de fazer um disco eu faria um disco com outras coisas novas. Eu dou aulas de composição e com os meus alunos eu faço os mesmos exercícios que proponho a eles e tenho composto canções. Quando termine o ciclo destes concertos, tenho o material para um disco novo que já não seja relativo ao concerto. Mas é especulação.

Nota: cartaz da conferência de Calcanhotto na USC
 

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