Filólogo brasileiro, publicou três livros sobre os cancioneiros galego-portugueses

No centenário de Celso Cunha, Martin Codax volta a Vigo

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photo_camera Celso Ferreira Da Cunha

As cantigas de Martin Codax voltam à ria de Vigo com o pergaminho Vindel. Esta volta bem merece termos uma lembrança para Celso Cunha, o seu primeiro divulgador, no centenário do seu nascimento, em 10 de maio de 1917. Faleceu no Rio de Janeiro em abril de 1989. Fernández del Riego lembra-o assim em 2001:

“Un home atento e como volcado cara os valores e manifestacións da nosa cultura medieval. Con responsabilidade e con termos rigurosamente científicos, traballou nos eidos da vella tradición literaria de Galicia. Fíxoo cunha fortaleza de espírito e unha modalidade, que deben ser forza motriz na nosa cultura actual. Dentro dese espírito, como dentro desa historia cultural, ocupou un dos postos de vangarda. Celso Cunha, ó escoller ó trovador Martín Códax como obxecto dos seus estudios, preferiu a un dos máis representativos da época. Precurou así situarse nunha perspectiva: a ofrecida polos mesmos trovadores. Porque só ela podería falarnos dos seus secretos e dos seus misterios".

O conservador da memória textual

A sua relação com a Galiza deriva principalmente do seu ofício de filólogo. Em suas palavras, um “filólogo é um guardião da fidelidade das obras do passado, um conservador da memória textual de uma nação". Foi como filólogo, quer dizer, como conhecedor da história da língua e do seu desenvolvimento e como estudoso da nossa literatura medieval que essa aproximação mais se desenvolveu. Em setembro de 1984, acho que debeu ser a sua derradeira visita a Galiza, participou, em Ourense, no I Congresso internacional da Língua Galego-Portuguesa na Galiza, com a ponência Problemas da editoração de textos galego-portugueses da Idade Média e formou parte da Mesa Presidencial na abertura do Congresso embora ser o seu compatriota Leodegário A. de Azevedo Filho quem tomar a palavra, ao lado do professor Carvalho Calero, para reivindicar a pertença do galego ao mesmo sistema linguístico e acrescentar que “como brasileiro, é claro que não posso deixar de comover-me diante da luta dos galegos em defesa do seu próprio idioma, tantas vezes ameaçado no seu direito de existir”

Mas à altura de 1984 já os estudos de Celso Cunha sobre os cancioneiros deram contribuição essencial para o conhecimento da origem e evolução da nossa língua. Seus três livros sobre os cancioneiros foram tese de concurso: o de Paay Gómez Charinho (1947), Joan Zorro (1949) e Martin Codax (1956).

1200px-Martim_Codax_Cantigas_de_AmigoMedievalista consagrado, sua obra filológica versa particularmente sobre os problemas de crítica textual e de versificação. Os seus trabalhos nessa área como Estudos de poética trovadoresca e Língua e verso têm sido considerados modelares pela crítica especializada.

Outra vertente dos seus estudos está nas inúmeras gramáticas que escreveu salientando pela sua divulgação na Galiza seu último trabalho, a Nova Gramática do português contemporâneo, com primeira edição em 1984, escrita em colaboração com Luís Filipe Lindley Cintra, da Universidade de Lisboa. O livro trabalha na chamada linguística contrastiva, que busca um código contrastivo da lusofonia. Nele se examinam, pela primeira vez, em confronto, as normas brasileira, portuguesa e africana do idioma.

Ensaios e reflexões sobre a língua

A terceira vertente da obra de Celso Cunha é a de ensaios com reflexões sobre a língua, entre os quais os livros Língua portuguesa e realidade brasileira, A questão da norma culta brasileira, Conservação e inovação do português no Brasil, Língua, nação, alienação e Em torno do conceito de brasileirismo ou Uma política do idioma, a que pertence o trecho que vai a seguir.

LÍNGUA, CIVILIZAÇÃO E CULTURA

A língua é um conjunto de sinais que exprimem idéias, sistema de ações e meio pelo qual uma dada sociedade concebe e expressa o mundo que a cerca, é a utilização social da faculdade da linguagem. Criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela à do organismo social que a criou.

Em sua história, o indivíduo desempenha papel modesto. É, porém, na execução individual que a língua se concretiza. E, como cada indivíduo tem em si um ideal linguístico, procura extrair do sistema idiomático de que se serve as formas de enunciado que melhor lhe exprimam o gosto e o pensamento. Essa escolha é sempre uma operação artística. É a fala individual, o estilo, o próprio indivíduo a expressar suas alegrias e suas angústias. Alguns, melhor dotados, conseguem captar a frescura lírica ou o calor épico do quotidiano, a vibração da época, transpô-los em caracteres e fazê-los reviver pelos tempos em fora. Por isso a obra de arte é intangível.

"Contra a Arte, ó! Morte, em vão teu ódio exerces!"disse o poeta. Mas, por expressarem os ideais artísticos da época, soaria falso um Virgílio quinhentista ou um Camões novecentista, e, porque foram grandes e porque foram gênios, certamente eles seriam os autores, se em outros séculos vivessem, não da Eneida e de Os Lusíadas, mas de poemas muito diversos no espírito e na forma.

Além disso, o passado é sempre fragmentário. Jamais o podemos reconstituir em suas minúcias, pois, como lembra Goethe, do que foi feito ou dito, uma ínfima parte foi escrita; do que foi escrito, uma ínfima parte foi conservada.

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É, assim, um erro ver o presente com os olhos do passado, como o é o inverso, examinar épocas antigas com preconceitos modernos. Ao historiador é necessária certa dose de despersonalização, deve ele seguir o conselho de Anatole France e ser, por estranho desdobramento, homem antigo e homem moderno, e viver sobre dois planos diferentes. Mas aos nossos historiadores da língua e da literatura -não há injúria em dizer-se- falta de regra esta elementar capacidade dramática: não conseguem despegar-se de velhos e cansados processos, e, temerosos da vida perigosa sobre planos distintos, procuram fundi-los, para sua comodidade, num só. É a tragicomédia do historicismo, a que se refere Leo Spitzer, "que parte para a conquista da verdade histórica 'objetiva' e traz apenas, como fruto da pilhagem, uma indigesta moles viscosa do subjetivismo do historiador, que, decapitando as épocas históricas e desconhecendo-lhes a forma mentis, relaciona tudo, exceto os a priori da própria época".

Um conhecido fato, narrado por Adolfo Mussafia, demonstra a que exageros pode chegar o historicismo inverso, que vigorou, com preponderância, em fins do século passado, quando Hermann Paul enfaticamente afirmava não haver outro estudo científico da língua senão o histórico.

Mandara Mussafia um examinando à pedra e pedira-lhe que escrevesse em francês a frase:

"O Imperador chamou Rolando."

O jovem prontamente redigiu:

"Lu emperere at apelet Rollant."

-Muito bem! -redargüiu.- Escreva agora em francês moderno.

A resposta foi também pronta.

-Ah! senhor professor, o francês moderno ainda não aprendemos...

Em verdade, nenhuma atividade exige mais, e mais tem padecido dessa visão sincrônica dos fatos do que a filologia. Explicam-se fenómenos antigos à luz de documentação moderna, estabelecem-se relações várias, sem levar em conta as divergências de tempo e de espaço, a cronologia e a geografia do fato linguístico-literário.

O mais grave, no entanto, o que está a matar o estudo do idioma em nossas escolas, principalmente nas primárias e médias, é que todo o ensino se faz na base do certo e do errado, do que é e do que não é vernáculo.

É natural que se evitem os erros, isto é, as formas linguísticas que transgridem a norma coletiva ou que são inadequadas a determinada função, mas não se deve nem se pode agir no caso com demasiado rigor, pois, como salienta Frei, a maioria das incorreções servem geralmente para prevenir e reparar os déficits da linguagem correta. Melhor que os filólogos, os escritores sentem isso, e fazem até da impropriedade uso consciente, empregando-a como recurso de estilo de rara expressividade. E aqueles de linguagem predominantemente afetiva são os que mais fogem aos padrões coercitivos.

Evitem-se os erros, os erros verdadeiros. Mas para isso só há o remédio já preconizado por Jespersen: "Nada de listas nem de regras, repita-se o bom muitas e muitas vezes."

Convenhamos, porém, nesta preliminar: o "bom" só pode ser assim considerado se for sentido como tal, e só pode ser sentido dentro de uma norma exeqüível, ou seja, de que participe o locutor.

Abandonemos, pois, esse ensino inoperante de regras e exceções. Estudemos a língua. Que não se repita em nosso ensino o que se conta de um professor dinamarquês, que, tendo perguntado a um aluno qual o gênero do substantivo francês mort - e acrescentando, em seguida, por quê? -, obteve a resposta: "porque vem do latim mors, que é feminino"; com o que não se satisfez e corrigiu assim: "nada disso, é porque é exceção"

(Do livro Uma política do idioma, 1965.)

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