Literatura e moda sem idade

Goretti Pina, estilista de roupas e palavras

Goretti Pina é da Ilha do Príncipe. Desenhadora, escritora, professora, advogada, criminóloga. Navega da moda à escrita e da escrita à moda, paixões surdidas quase a um tempo. Inspira-se nas pessoas e nas paisagens para, transformada a inspiração em obra, conquistar as pessoas com suas criações. 

Goretti Pina
photo_camera Goretti Pina

Quem é realmente Goretti Pina?

Ao que a Goretti Pina julga saber sobre si é que é alguém que gosta muito de existir, apesar de todas as turbulências próprias do estar-se neste mundo, e sentir-se impotente e por vezes frustrada com as limitações que tem, sobretudo perante as injustiças, intolerâncias e falsidades. Que procura que os seus momentos de alegria possam durar, serem sempre extensivos a mais alguém e que possam superar os momentos menos alegres. 

Você define-se como criadora de moda, estilista. Se a roupa veste o corpo e as palavras são vestido das emoções, aceitaria ser definida como estilista da língua?

Engraçado, interessante. Estilista da língua?!... Está a falar, por exemplo, do extraordinário Mia Couto, não? Ainda teria de ler muito e de treinar muitos desenhos nesta minha escrita ainda tão pouco madura! Mas sou atrevida o suficiente para registar esta pergunta como um desafio a ter em conta no meu processo de crescimento enquanto escritora. E assim, por “sua culpa” um dia possa eu vir a conseguir brindar os meus leitores com algum estilo neste domínio, além do simples comunicar e contar histórias, pensamentos e emoções, que é o que tenho feito. 

Fale-nos de seus livros, de Viagem por começar ...

Penso nele como um livro feliz e de sonho, no sentido em que nele tudo é maravilhoso.

Viagem foi o primeiro livro editado. É um livro de paixões e de viagens

E até as inseguranças, incertezas e noção de que nada nos está garantido tem o seu apontamento de felicidade e de certezas. É próprio do estado de paixão seja por alguém, por algum lugar, ou simplesmente pela dádiva que é a vida. Foi um livro, um sentimento, uma capacidade de observação e “estado de graça”pelo qual me vi invadida e atropelada durante um determinado período, inclusivamente enquanto fazia pesquisas para a escrita do romance No dia de São Lourenço.

No dia de São Lourenço rende homenagem a factos...

O primeiro grande facto é a importância da representação do Auto de Floripes -peça de teatro de rua que costuma ter lugar no 10 de Agosto, dia de São Lourenço- na ilha do Príncipe) para as pessoas do e no Príncipe.

O dia de São Lourenço é como um balão de oxigénio num lugar lindíssimo

É por ventura o maior postal cultural de São Tomé e Príncipe que atrai para a ilha tantos olhares e presenças como em nenhuma outra altura do ano e transforma a cidade de Stº António num verdadeiro palco de festa. É como um balão de oxigénio num lugar lindíssimo, mas com as dificuldades características de ilha num país ainda com muitas carências, sobretudo no domínio da saúde. 

… e homenagem a pessoas...

Sim, especialmente a três:

A Manuela, uma enfermeira extraordinária como profissional e como ser humano.

À senhora Quéia, conhecedora de práticas e métodos tradicionais de fertilização apenas com massagens corporais e dieta alimentar à base de plantas medicinais e outros frutos da terra. 

O Vado, um jovem dinamizador cultural que faleceu em Agosto, mês de festa, num brutal acidente de moto, poucos meses após o seu casamento, tendo deixado a esposa grávida.

Você trabalha moda infantil...

Trabalho numa moda sem idade, isso sim. A minha marca é para todos os que encaram a moda como um apontamento de bem-estar, independente da idade. Portanto, crianças incluídas, com certeza.

Para quando literatura infantil?

Literatura infantil, na minha perspetiva já é mais exigente.  É uma literatura de falsa simplicidade porque escrever para futuros homens e mulheres, pessoas em verdadeira construção/formação interior requer um traquejo e um cuidado que é obrigatório considerar.

Literatura infantil é uma literatura de falsa simplicidade

É preciso leveza e ao mesmo tempo um sentido de responsabilidade bastante apurado, e acertividade no que se vai comunicar e transmitir. Já fui desafiada a fazê-lo, e quero muito vir a fazê-lo, mas ainda não me sinto preparada. 

Se calhar, a literatura não tem idade
Sou de opinião que se não é possível nem necessário haver uma literatura para cada faixa etária, no geral deve haver, pelo menos, literatura infantil muito bem demarcada da literatura para adultos. Um adulto ganhará sempre ao ler um livro infantil, mas raramente será recomendável que uma criança leia um livro fora do seu universo,um universo que deve beneficiar de algum resguardo. Já agora, O principezinho é para adultos ou para crianças?

Reproduzimos a seguir um fragmento dum livro de Goretti Pina

 No dia de São Lourenço/O encanto do Auto de Floripes, Edições Colibri, 316 páginas, 17 euros, Lisboa 2013

De repente, o ruído de uma moto Honda abafou as palavras seguintes de Ligeiro Andrade. Era Vado, com toda a boa energia que lhe era característica. Em poucos segundos, encostou o transporte e tirou, de uma argola de arame pendurada no guiador, o peixe fresco que trazia para Ma Gaane. Uma das três corvinas vermelhas de tamanho médio a que, persistente, havia conseguido cravar o arpão. Tinha na pesca submarina uma das suas paixões. Quando corria um pouco melhor, lembrava-se da amiga. Vado tinha a pele dourada pelo sol, tanta era a vida ao ar livre. A mostrar nuns calções pelo joelho as musculadas e longas pernas ligeiramente arqueadas, aproximou-se do grupo, que, naturalmente, transferiu para ele a atenção. Do cumprimento que proferiu ao chegar, ouviu em coro a resposta. Eram vozes que, por contágio, se animaram com a sua agradável presença. Ma Gaane recebia-lhe o peixe das mãos, quando sobre o ombro Vado já tinha Bibas, que lhe fazia festas na cabeça, enquanto ele falava com Isma, de quem estranhou as pálpebras inchadas. 

– É, meu rapaz, é de chorar! Ela chegou-me aqui nesse estado. Mas eu já disse a Isma que muito pouca coisa nessa vida merece nossa lágrima!... – começou Ma Gaane por elucidá-lo, afastando-se entretanto com a corvina para a cozinha.

As últimas palavras de Ma Gaane tinham o selo da mais pura verdade. Vado concordava. Também era de opinião de que uma larga maioria de coisas e de situações têm a importância que lhes atribuímos. Não mais. Cabe-nos, então, dosear esse valor da maneira mais sensata que pudermos, para não nos deixarmos dominar e consumir. A responsabilidade é nossa. Tal como é a nós que compete a compreensão e gestão das nossas emoções.  

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