LUSOFONIA/A PALAVRA COMUM

Entrevista à escritora brasileira Susanna Busato

Publicamos a seguir um texto que viu a luz em Palavra Comum, revista digital de Artes e Letras com o qual o Sermos tem estabelecida uma relação de parceria. 

Susanna Busato
photo_camera Susanna Busato

Susanna Busato, autora do livro Corpos en Cena é uma gaivota paulistana. Filha dos anos 60, meio hippie nos anos 80, virou professora universitária nos anos 90 com a poesia na rota da vida. Durante os voos virou Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC/SP) e Doutora em Letras (UNESP/São José do Rio Preto), onde fincou o bico como professora de Poesia Brasileira, e onde tem um grupo de estudos de poesia, o GEP/CNPq. Hoje se dedica a devorar nos lírios as serpentes que habitam seu corpo. Por isso traça roteiros pra tudo. Viaja dormindo, sonha acordada e realiza os desejos em voo rasante. Deixou seus rastros e pensamentos em várias revistas literárias e acadêmicas. Num dos voos, ganhou o Prêmio Mapa Cultural Paulista na fase estadual, Categoria Poesia, em 2010. O livro Corpos em cena integra a Coleção Patuscada, premiada com o ProAC – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. O livro Corpos em cena foi finalista do Prêmio Jabuti 2014.

- Que são para ti a poesia e a arte?

-  Para mim, a poesia e a arte são experiências de conflito. Tanto a poesia como a arte valem-se de um discurso que desloca os significantes para outras zonas de sentido, provocando o olhar daquele que lê a obra. Sentir-se provocado depende do grau de tensão que a obra promove no sujeito, sendo que o seu grau de repertório influi bastante. Quando falo de conflito quero dizer que a poesia provoca no sujeito que a lê e/ou sente uma comoção, ou seja, um mover-se com a obra, para a obra, atravessando-a, penetrando-a, recortando-lhe a carne. A poesia e a arte promovem um questionamento sobre o mundo. A poesia recoloca as palavras em zonas semânticas distantes das zonas familiares. A poesia rege o mundo das palavras a querer fazer emergir a sinfonia interna, os ruídos sinestésicos do corpo.

- Como entendes o processo de criação artística?

- O processo de criação artística é bem peculiar a cada um. O meu processo segue apenas um roteiro quando já aconteceu o primeiro “insight”. Este pode surgir por meio de um esforço deliberado de jogo, um exercício mesmo de grafar palavras, deixar a mente livre correr os dedos pelo teclado ou pelo papel. Exercício deliberado porque é fruto de um desejo que impulsiona a estabelecer uma relação íntima com as palavras, e com um universo, eu diria, que envolve vários elementos de ordem psicológica, emocional, histórica e estética. É um universo de exploração sinestésica de elementos que emergem motivados pelas palavras, que, por sua vez, também surgem motivadas. Outras vezes, a mente flagra um instante, um istmo de qualquer coisa que encontra sulco nas coordenadas do olhar. Esse último gesto é incontrolável, fruto do acaso mesmo, que procuro segurar e grafar. Impossível não me depositar naquilo que aparece escrito. Leio e penso e reescrevo e redimensiono até chegar a uma espécie de cansaço. O processo criativo então se instala quando o movimento é o de uma procura. Quero dizer, uma procura por um corpo tal qual o corpo de barro que surge do trabalho com as mãos.

- Qual consideras que é a relação -ou qual deveria ser- entre as diversas artes (literatura, artes plásticas, teatro, música, audiovisual, etc.)?

- Os limites entre as artes existem por uma espécie de categorização. Sua natureza é a da convergência. Em termos de criação, o universo artístico enriquece-se quando o artista consegue mobilizar em seu trabalho as várias instâncias da arte. Para o artista não há separação: voz, palavra, imagem, fotografia, pintura, performance, som, ruído, escultura. Mas em termos de realização, cada artista encontra um modo de fazer convergir no seu instrumento esse universo plástico que se lhe apresenta.

- Como consideras que se combinam -ou se deveriam combinar- arte(s) e Vida?

- Arte e Vida são duas dimensōes que dialogam entre si, sem se confundirem. A Vida é algo que flui no seu movimento contínuo, tal como um rio que corre para o mar. A Arte é o gesto que interrompe o curso do rio, que transforma o caminho e impōe o conflito, pois multiplica os roteiros da viagem e faz o navegante perceber que o espaço que percorre é o de seu próprio corpo, suas vias internas. A Arte nasce justamente desse encontro com a Vida, para mostrar justamente aquilo que não conseguimos compreender no automatismo das horas. E isso a Arte faz a partir dos elementos formais que recolhe de si mesma na convergência com os signos expressivos de seu repertório e dos da cultura.

- Que referentes tens no teu trabalho criativo? Quais deles achas que são injustamente desconhecidos?

- Fui me alimentando daquilo que me foi oferecido desde cedo: a leitura das cantigas de amigo e de amor, da poesia provençal, barroca, romântica e simbolista. Essas referências primeiras na minha formação como leitora na juventude acabaram por se encontrar com a poesia moderna, redimensionadora da forma estática dos sonetos, por exemplo. Esse encontro me ensinou a concisão necessária, fortalecida pela leitura dos poetas concretos. Meus contemporâneos me intrigam e me impulsionam também. Ler os poetas de minha geração é algo motivador. Encontro o traço do corpo, na minha relação com a escrita, no natural traço erótico da linha curva que encontro no lado sonoro da voz e na linha do discurso poético. É a dança e o canto um dos elementos que despertam esse movimento erótico do discurso poético. E normalmente é isso que busco nos poemas de outros poetas.

- Que caminhos entendes necessários para transitarem as artes hoje, nomeadamente na comunicação com o público e a sociedade?

- Estamos vivendo um momento de forças anti-intelectuais, de massificação de produções culturais que não têm nada a dizer, pois visam o lucro imediato, um consumo rápido. Faltam políticas públicas eficientes e contínuas para dar suporte aos artistas em termos de sua produção e divulgação do trabalho. Por exemplo, a residência para autores em Universidades (escritores e poetas) já existe no Brasil, mas não é muito comum. Aproximar o público das produçōes artísticas deveria ser tarefa também das escolas públicas, como um hábito, como as visitas a museus e galerias, seguidas de oficinas de criação. Creio que a escola é um espaço formativo bastante importante, dentro da qual se deveriam proporcionar atividades de criação em várias áreas artísticas. A Arte é uma via inteligente para o conhecimento transformador do mundo. Pensa-se hoje muito em especializações do conhecimento, em um ensino dirigido ao mercado. Esquece-se de que o aluno é antes de tudo um ser da cultura, um ser que pode atuar estética e cognitivamente.

- Que sensações tens a respeito da cultura galega, nomeadamente a respeito da sua relação com a Lusofonia?

- Quando estive em Santiago de Compostela, fiquei deslumbrada com o encontro íntimo com nossa origem única: a língua! O fato de podermos nos comunicar num diapasão comum com o português fez-me curiosa para com a língua galega. E me senti em casa! E ao visitar o Museu do Povo Galego pude me encontrar também com minha origem espanhola por parte da avó materna. Muitas particularidades da cultura galega como as rendas, os brinquedos, as festas, estão presentes num Brasil que conheço.

- Como é a tua visão hoje da literatura e cultura no Brasil?

- O Brasil é um país rico culturalmente falando. Sua literatura emerge de modo variado pelo território. Tem-se publicado muita literatura. Não creio que o consumo seja na mesma proporção. Ainda privilegiamos um cânone que é estudado na escola e que é reiterado pela mídia em geral e pelo mercado editorial. Creio que existe uma lacuna entre o programa ensinado e a realidade de uma poesia que emite e transmite uma presença que faz dialogar passado e presente. Os espaços públicos de produção e fomento à Arte e Cultura brasileiras necessitam ser colocados como prioridade. Mas, atualmente, retiram-se as verbas destinadas a esses espaços e fecham-se muitos deles, por conta de um corte de gastos, fruto de uma política atual que não percebe que, em matéria de cultura, investimento é a palavra. Tenho receio de que o mercado de massa, que visa ao lucro imediato, emburreça mais as consciências e reduza o poder de fruição da maioria, por uma imposição de produtos culturais que apenas servem à indústria cultural e ao mercado financeiro.

- Trabalhas na Universidade. Como é a situação da educação, tanto no Brasil como em geral no mundo, do teu ponto de vista? Que modelos achas interessantes para serem aplicados na educação?

- Não tenho condições de avaliar a educação no mundo, mas no Brasil. Percebo que estamos vivendo um momento de retrocesso político e isso afetará enormemente a educação neste País. As reformas que estão sendo impostas (formação específica para o mercado de trabalho), sem a devida discussão com a sociedade e com os responsáveis pela educação, os profissionais da educação, vão colocar em perigo as futuras geraçōes em termos da formação integral. Temos atualmente um modelo de educação que visa os exames de avaliação nacionais e os exames de admissão ao curso superior. Teríamos de repensar esse modelo, que, do meu ponto de vista, visa apenas ser uma ponte e não um espaço de formação integral. Formar já o aluno para o mercado de trabalho é um objetivo que vê a escola pública como o espaço de formação da classe trabalhadora, ou seja, daquela que não pode pagar uma escola particular, que, por natureza seria destinada aos alunos filhos de uma determinada elite social e econômica. Para mim, isso fere a política de uma escola pública de qualidade para todos e alimenta uma fatia dos empresários da educação que visam o lucro nesse setor.

- Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?

- Afora os projetos acadêmico-científicos ligados ao meu trabalho na Universidade, tenho desenvolvido atividades artístico-culturais como recitais dentro da Universidade. Aprendi muito participando de saraus em espaços culturais. Por duas vezes integrei dois projetos de recitais, patrocinados pelo Itaú Cultural, em São Paulo: um que teve a poesia de Haroldo de Campos em foco e outro que teve a poesia de Oswald de Andrade como homenageado, por ocasião da FLIP (Festival Internacional de Literatura) em Paraty, Rio de Janeiro. Creio que trabalhar na Universidade com a promoção de um conhecimento artístico entre os alunos de Letras é uma contribuição que faço à formação integral deles. Outro projeto que tenho agora é organizar meu próximo livro, que, neste ano de 2017, espero que possa estar pronto para ganhar as vistas de alguma editora.

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