Carvalho Calero em Lugo (1950-1965)

No ensaio Cautivério de Fingoi, publicado pela Deputación de Lugo em 2010, Ramom Reimunde investiga e interpreta os anos lucenses de Carvalho Calero entre 1950 e 1965, fundamental para a sua obra literária e científica.
Ricardo Carvalho e Ramón Reimunde
photo_camera Ricardo Carvalho e Ramón Reimunde

D e justiça é que se dedique o Dias das Letras Galegas a D. Ricardo, porque é uma forma especial de agradecer-lhe tudo o que ele fez por essas Letras, tanto em língua como em literatura. Outro tema é se vai seguir confinado este 17 de maio, e o passamos ao do 2021. Justiça divina por um adiamento injustificado!

Todos os galegos do nosso tempo relacionados com a cultura do país conhecemos D. Ricardo, mesmo o tratamos esporadicamente e coincidimos com ele em atos, uns mais que outros, ainda também os que se apontam agora a um bombardeamento mediático oportunista. Não nos enganemos: D. Ricardo teve sempre cara de poucos amigos, realmente só uma dúzia de antigos galeguistas e outra de novos discípulos, sempre com uma careta de sorriso forçado, e isso sim, muita elegância e educação no trato cordial. Eu mesmo estive em um segundo plano como aluno e admirador da sua auctóritas, mas com o pequeno mérito de tê-lo defendido e louvado quando não o fazia quase ninguém, abertamente, e seguindo as suas ideias linguísticas nas aulas de galego, o qual tinha os seus problemas. Também escrevi um livro pouco conhecido com o título de Cautivério de Fingoi, publicado pela Deputación de Lugo em 2010, no qual investigo e interpreto os anos lucenses de Carvalho Calero entre 1950 e 1965.

Nesse livro de pouca importância pelo autor, mas de muita relevância pelo protagonista, há uma tese que trata de provar que esses anos que D. Ricardo passou em Lugo, com trabalho docente e fechado em Fingoi, foram fundamentais para a sua obra literária e científica e para a sua projeção em toda Galiza, que afinal atingiu.

Com certeza, Carballo já estava feito antes, nos tempos do Seminário de Estudos Galegos, a revista Nós e o Partido Galeguista. Mas após a chamada guerra civil e o pós-guerra, vai a Lugo em 1950 para dirigir o colégio Fingoi privado, e ali acha um refúgio seguro e trabalhoso, mas também as condições favoráveis para executar um ambicioso projeto de investigação e escrita, seguindo uns passos prudentes de homem precavido que vai elaborando cuidadosamente a sua própria imagem. Em Lugo participa nas tertúlias dos cafés, só ao princípio da sua estadia, conhece a sociedade luguesa sobretudo das famílias de alunos de Fingoi, faz literatura em prosa e verso, publica livros muito importantes, escreve para revistas e jornais, e dá palestras cada vez mais longe e mais alto, entra na RAG, e atinge finalmente um nível superior para ir a Santiago e ser o primeiro catedrático de Galego da sua universidade. São passos da sua vida que hoje alguns sabem, mas poucos reconhecem a importância que tiveram aqueles quinze anos que passou em Lugo. Ele mesmo titulou assim uma palestra em Buenos Aires que logo incorporou como capítulo no livro Letras Galegas. Não fala ali do seu cansaço, da sua solidão, nem dos limitados meios para a investigação e leitura de todas as obras literárias galegas que teve que estudar e comentar. Só podemos hoje adivinhar algo disto nos seus epistolários com Pinheiro e Del Riego, ou nos seus poemas de Saltério de Fingoi e no apartado Excalibur de Futuro Condicional, escritos em Lugo, quando já sabe que a sua meta está além da cidade amuralhada.

Tive dúvidas sobre o título do Cautivério, sabendo que não era palavra galega dado que o espanhol cautivo é cativo. Podia dar lugar a más interpretações sobre a estatura física, não a moral ou científica, que era muito alta. Na segunda edição, que está corrigida na Deputación de Lugo e espero que pronta para editar, já o intitulo Cativeiro de Fingoi, reescrito com a ortografia internacional que praticamos, com pronúncia galega, a qual sem dúvida seria aplaudida pelo nosso mestre. Tinha também outra dúvida, porque realmente D. Ricardo não esteve preso e cativo numa prisão em Fingoi, mas sim isolado, com um jeito de vida ascético, sem sair a Lugo, como numa cela conventual, dedicado ao estudo, a docência e a escrita. Jogando com o título do seu poemário salmódico Saltério de Fingoi, não achei outra palavra melhor para definir aquele retiro do mundanal ruído. Talvez hoje, desde os duros tempos atuais, houvesse podido empregar as palavras “Confinamento de Fingoi”. Ele precisava de aquele lugar retirado, protegido pela família de Antón de Marcos, onde observar boa conduta e passar inadvertido ao regime. Foi posto ali e escolhido por amigos galeguistas para ser o seu baluarte na crítica literária e na língua, como o grande Cunqueiro o era na prosa.

Interessa salientar na biografia de Carvalho, quem morou vinte anos em Ferrol, trinta e cinco em Santiago, e quinze em Lugo, que ainda sendo esta a etapa mais curta, não deixa de ser importante para a sua realização total, porque é onde se faz, onde se prestigia. Sem esse tempo em Lugo, não haveria o Carvalho que chegou a ser, nem se dariam as circunstâncias favoráveis para o seu trabalho silencioso com apoio dos galeguistas de Galaxia. Este assunto não é menor, porque os sobreviventes do Partido Galeguista sabiam quem fora Carballo nos tempos da República e onde estava agora. O Colégio Fingoi ficava pequeno para D. Ricardo, que ocupava as poucas horas livres em outras cousas de mais alto nível que a educação primária, ainda que fosse da ILE.

É óbvio que aquele homem de fortes convicções e caráter, com disciplina e imensa capacidade de trabalho, não podia ficar encerrado para sempre no Colégio Fingoi. E, portanto, foi-se para Santiago em 1965.

Mas antes de ir-se, elaborara desde Lugo algumas obras tão importantes como a Tese Doutoral do 54, a História da Literatura Galega Contemporânea do 63, e a Gramática Elemental del Gallego Común do 66. A Gramática seria algo muito útil então, sobretudo nas aulas. A História da Literatura, reeditada até o 1976, nunca foi superada, ainda que alguns o intentaram sem tanta fortuna para estabelecer as gerações e estudar os grandes clássicos. E a Tese Doutoral, pouco conhecida e nunca editada, lida em Madrid em 1954 com o título de “Aportaciones fundamentales a la literatura gallega contemporánea”, que foi mecanografada em 276 páginas de papel finíssimo pelo autor. Talvez algum dia merecesse ser publicada íntegra tal como a apresentou, ou traduzida, porque é um modelo de rigor científico. Os autores estudados nela são precisamente os sete poetas que publicou em livro aparte no 1955 (Rosalia, Curros, Pondal, Noriega, Cabanilhas, Amado e Manuel António) e os dois prosistas que por primeira vez eram analisados como tais (Otero Pedrayo e Castelao), conhecidos daquela em parte por outros motivos. Desgostava a D. Ricardo terem suprimido a palavra “fundamentales” na edição em síntese de Gredos, porque não o eram por ser achegas suas mas desses autores.

Centramo-nos aqui nos anos lucenses de D. Ricardo e, porém, a obra mais importante do nosso admirado professor foi realizada em Santiago nos últimos dez anos, desde Problemas da Língua Galega no 1981, com a reedição de toda a sua Obra Completa. Esse era o Carvalho total e o Carvalho final. Tomemos nota os do Carballo anterior.

E que foi feito logo em Lugo? Foi feito um Carvalho Calcário, um magnífico exemplar de galego cabal de pés à cabeça como não houve outro igual: o mais valioso e brilhante homem para as Letras Galegas no passado século XX, modéstia fora.

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