Os 40 anos do Poema Sujo

Ferreira

O Poema Sujo fala de assuntos sofridos, de pobreza, de experiência de vida. Publicado em 1976 é considerada a obra mais ousada de Ferreira Gullar. Produzido no exílio, em Buenos Aires, surgiu da necessidade de, como ele mesmo afirmou, "escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre"

Ferreira Gullar é poeta, crítico de arte e ensaísta brasileiro. Nasceu em São Luís, Maranhão, no dia 10 de setembro de 1930. Com 19 anos, publicou seu primeiro livro de poesias. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde atuou como jornalista.
 
Ferreira Gullar presidia o Centro Popular de Cultura da UNE quando, em 1964, se produziu o golpe militar. Filiado ao PC e um dos fundadores do grupo Opinião, foi preso. Viveu fora do país de 1971 a 1977. Esteve exilado em Paris e depois em Buenos Aires. 

poema-sujo-ferreira-gullarEm 1976, publica o Poema Sujo, escrito em 1975, no exílio em Buenos Aires, que representa a solução dos problemas vividos por todos os intelectuais do período, que viram seus ideais serem sufocados pelo golpe de 1964. Em 1977 é absolvido pelo STF e retorna ao Brasil.

Ferreira Gullar ganhou diversos prémios de literatura, entre eles o Prémio Jabuti de Melhor Livro de Ficção de 2007, com Resmungos. Também teve reconhecimento com o Prémio Camões, em 2010. No mesmo ano, recebeu o título de Doutor Honoris Causa, da UFRJ. Em 2011, recebeu o Prémio Jabuti de Poesia. Em outubro de 2014 foi proposto  para a cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Letras, a que tem como patrono o poeta e inconfidente mineiro Tomás Antônio Gonzaga que em suas Cartas Chilenas faz uma violenta crítica ao governo colonial português. Em dezembro desse mesmo ano realizou a exposição A Revelação do Avesso onde apresentou 30 quadros feitos a partir de colagens com papel colorido, que foram produzidas como passatempo. A mostra foi acompanhada por um livro com fotos da coleção completa e também com poemas do autor. Em 2015 apareceu o livro Autobiografia poética e outros textos. O autor confessa que essa Autobiografia Poética foi o caminho que encontrou para voltar aos momentos do passado, desde quando publicou A Luta Corporal, em 1954, e quando descobriu a poesia moderna até Poema Sujo e outros poemas.

“Eu queria reviver aqueles momentos sem o sofrimento daquela época, sem um general na esquina para me fuzilar. Há quem acredite que os poetas sofrem muito para escrever. Não é verdade - no momento da escrita, surge uma felicidade. Escrever é uma alquimia, pois transformo sofrimento em alegria, em beleza, em emoção que o outro vai sentir”, disse Gullar.  

O Poema sujo

O Poema Sujo nasceu durante uma fase muito difícil de sua vida, de quase desespero. Ele próprio tem descrito, em diferentes entrevistas como aconteceu. Eis o que diz para O Globo: ”No Poema Sujo, eu realmente vivia um impasse, pois não sabia o que ia acontecer comigo. Eu já tinha saído da ditadura chilena e, na Argentina, preparavam outro golpe. Não tinha para onde ir porque em volta só havia ditaduras e, como meu passaporte estava vencido, não conseguia ir para a Europa. Tentei renovar na embaixada brasileira, mas me foi negado e ainda cancelaram o que eu tinha. Então, escrevi o Poema Sujo como se fosse a última coisa da minha vida, daí essa relação de emoções: eu estava no limite. Isso ninguém inventa. Eu preferia não ter vivido daquela forma, mas a vida é incontrolável. A situação era insuportável, mas o fato de eu ser capaz de expressar aquele impasse me ajudava. O pior é aquele que não consegue se expressar".

 Ferreira_Gullar_por-Diogo_D`AuriolSobre o título, que até parece uma contradição, Ferreira aclara como nasceu: “Nasceu de imediato, praticamente junto com o poema. Às vezes, escrevo um poema e não sei o título. No caso do Poema Sujo, eu não só tinha o título como sabia que teria de 70 a 100 páginas. Escolhi esse título porque sabia que ia falar de assuntos sofridos, de pobreza, que foi minha experiência de vida. Ele é sujo ao mesmo tempo que é poesia e tenta superar o sujo da vida, trazendo impregnada essa experiência. Eu não aceitava estar longe do Brasil, havia pessoas dispostas a passar anos na Europa, mas não era o meu caso – eu queria voltar a todo custo. Assim que pude, voltei, mesmo correndo riscos. Aí entra o Poema Sujo, que foi trazido ao Brasil pelo Vinicius de Morães. A publicação me deu uma notoriedade que, praticamente, impedia qualquer ação dos militares contra mim. Quando cheguei ao aeroporto do Rio, havia uma ordem de prisão para José de Ribamar Ferreira, mas havia uma multidão me esperando e não puderam fazer nada. Ou melhor: me prenderam no dia seguinte, mas logo fui solto. 

Passaram anos, 40 anos desde sua publicação. O Brasil atravessa momentos de dificuldade. Alguns autores, como Leonardo Boff, acham similitudes entre o golpe de 1964 que trouxe consigo a ditadura e o exílio e a recente substituição na chefia do Estado: “Ambos são golpe de classe, -disse Bloff- dos donos do dinheiro e do poder: o primeiro usa os militares, o outro o parlamento. Os meios são diferentes mas o resultado é o mesmo: um golpe com a rutura democrática e violação da soberania popular” 

Podemos pergunta-nos se o Poema Sujo segue vigente 40 anos depois, se ainda é capaz de chocar as pessoas. E Ferreira Gullar dá cumprida resposta: “Acho que emociona. Claudia (Ahimsa, sua companheira, que conheceu em 1994) soube que foi criada uma banda de rock chamada Poema Sujo. Isso é legal, pois expressa a vida e beleza dentro do sofrimento. Cada qual tem suas perdas. Então, quando a pessoa se defronta com um poema que a comove é como se ela estivesse vivendo isso. É o melhor da literatura: compartilhar com o autor o sofrimento, mas de forma sensorial. É a tal alquimia: transformar sofrimento em alegria estética”.

Maior poeta? Como você mediu isso?

Ferreira Gullar está em um ponto da carreira em que é constantemente apontado como o maior poeta vivo do Brasil e o nome que o país teria para um Nobel. Mas não se importa muito com isso e com o efeito que essa situação tem, ou pode ter, sobre o seu trabalho. Daí que, contundente, aclare: “Não embarco nessa. Agora, não posso fingir que não é gratificante para mim as pessoas gostarem do que eu faço e me considerarem um poeta de qualidade, importante e tal. Claro que isso é bom. Mas com esse negócio de maior poeta, a resposta apropriada é a do Drummond: “Maior poeta? Como você mediu isso?”. 

Assim fala Ferreira Gullar, próximo como está, neste dia 10, a completar os 86 anos e que afirma que “a poesia é algo incontrolável. Se alguém vive de poesia, ou morre de fome ou começa a escrever bobagens porque não é fácil assim. A poesia, como vejo, nasce do espanto, de alguma coisa que surpreende e que você tem necessidade de comunicar aos outros. É uma experiência de vida especial, não acontece todo dia.

Isso é o que move o poeta a escrever. Sem isso, é possível até manusear bem as palavras, mas o poema fica vazio. É meu caso”.

Aqui pode-se ler o Poema Sujo
 

Nota: O retrato do poeta é da autoria de Diogo D'Auriol

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